29/10/12

Para o Manuel António Pina

Devíamos cultivar a delicadeza como quem cultiva gladíolos. Dar prioridade aos velhos, afagar o cabelo das crianças e sorrir sempre aos que se levantam cedo. Devíamos tratar dos bichos com cuidado idêntico ao que pomos na preparação do chá – e devíamos preparar o chá com a lentidão das gueixas.
Amantes corteses, caso se mostrasse absolutamente necessário, cortaríamos os
 pulsos com asseio.
Devíamos reaprender a sophia grega, subir sem fôlego ao Tibete e sentir de novo os pulmões explodir. Devíamos ser heróis, santos e Homens Azuis. Pornográficos e exemplares, como Uriel da Costa: estendido no chão à entrada do Templo, para só depois se suicidar com parcimónia.
Devíamos conhecer de cor uns quantos versos. Comunicar por gestos como os surdos-mudos e os observadores de baleias. Esperar Godot sabendo que não vem: "Que fez algum poeta por este senhor?" Fecundar a matéria viva como Joseph Wayne fecundou a árvore. Espantarmo-nos com a música e dançar dionisicamente. Recusar dicotomias e os ângulos rectos: todo o espaço é curvo. Negar deus caso até exista e acolhê-lo às vezes “à noite, no escuro”.
Devíamos ser telúricos nos anos bissextos e prudentes nos dias feriados (assim como assim, são cada vez menos); silenciosos como um eremita, orgiásticos como Teresa D’Ávila e conhecer de cor uns quantos versos: “A poesia vai acabar, os poetas/ vão ser colocados em lugares mais úteis./ Por exemplo, observadores de pássaros/ (enquanto os pássaros não acabarem.)”
Só depois, então, cumpridos todos os requisitos, “pôr um cinturão de bombas” e abraçar o corpo como uma herança indígena. Sobretudo, conhecer de cor uns quantos versos: “Ainda não é o princípio nem o fim do mundo, calma é apenas um pouco tarde”.

19/10/12

Manuel António Pina

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não acabarem).
Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei:
"Que fez algum poeta por este senhor?"
E a pergunta afligiu-me tanto
por dentro e por fora da cabeça que
tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
– Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? –

08/10/12

“Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses”


A ironia será uma inclinação do espírito, antes de ser instrumento literário ou rasgo de retórica. Proudhon, anarquista que ousou escrever que a propriedade é um roubo ainda os famigerados hedge funds não tinham sido inventados, chamou-lhe garante de liberdade. 
Palavra antiga, virá de Sócrates, embora não seja certo que o filósofo estivesse a ser irónico quando, bebida já a cicuta, tem como derradeiras palavras “eu devo um galo a Asclépio”, sendo Asclépio o deus grego da saúde. Mas se na sua forma socrática a ironia parecia buscar a verdade, no nosso tempo ter-se-á deixado disso. 
Vivemos no caos e não será o busão de Higgs a livrar-nos do embaraço, tanto mais que o nobel Leon Lederman lhe chamou originalmente, “the goddamn particle” a partícula maldita, e não “a partícula de Deus” como ficou conhecida. Suprema ironia! 
Dito isto, o caos – e não é preciso ser tão metódico com Kant para o reconhecer – é duro de aguentar. Nem todos teremos suficiente sageza para levar a ironia, literalmente, até ao fim, à imagem do “pai da filosofia” ou, bem mais perto de nós, de Jack Daniel, criador do whiskey homónimo que já na recta final ainda conseguiu pedir, e sem perder as maneiras, “one last drink, please”. 
Acresce ainda que, enquanto na Antiguidade socrática havia dúvidas, na Modernidade socrática jorraram dívidas. 
Sem razões para descrer da recente exegese camoniana-tomista do Primeiro-Ministro, a qual tudo complica – há "uma corrente que nos arrasta para trás (…) mais poderosa do que os ventos que nos impelem para a frente" –, restar-nos-á o consolo da filosofia de que falava Boécio. 
Isso, ou irmo-nos inclinando até cair, porque afinal, parafraseando o poeta, gracejar sempre também cansa.