02/01/12

Alice já não mora aqui

Os mais pobres viajavam, então, de Sud Express.
A emigração a salto ficara para trás, a guerra colonial também, e eles enchiam as aldeias em Agosto.
Desforram-se nos bailaricos, na língua que embasbaca os locais — “foi ali deitar um cu de olho”, querendo dizer un coup d’oeuil —, nas peles nuas e leitosas nunca vistas cumulando de risos piscinas naturais pecaminosas e álgidas, nos encombrants carrões que bloqueiam os rebanhos, nos casebres derribados que dão lugar a maisons imaculadas, babéis de azulejaria e alumínios rascas, obliquidades suíças, colunas e frontões gregos, muito antes de o pós-modernismo ter recuperado o kitsch ou Almodóvar o ter elevado a categoria de culto.
O que mais querem é enterrar a mala de cartão, o trabalho duro do chantier a alombar com cimento, eles.
Elas, mulheres-a-dias
“És portuguesa? Então conheces a Maria!”, e eu: “Não, quem é a Maria?”, e ele: “É a minha bonne!”, diz a criança, cujo mundo se resume ainda ao imobilismo eterno de um pequeno faraó.
Os bidonvilles deram lugar aos HLM (Chelas avant la lettre),
a casa da patroa
— a exemplo da Nação, as portuguesas são humildes e honestas, comentam entre si as madames…
à casa de concièrge, a ascensão possível.
Linda de Suza canta “deux valises en carton sur la terre de France”.
Nos EUA criaram-lhes um museu em Ellis Island: fotografias monumentais, registo da última esperança, rostos cujo olhar explicará muito do futuro da América.
A jovem mulher sentada à minha frente denuncia apenas tristeza e susto. Duas crianças pequenas, um farnel e uma mala amarrada com uma corda. A carruagem leva emigrantes que regressam lá-bas. Homens. Passada já a fronteira com Espanha, conta que vai à procura do marido: “Deixou de me dar notícias, de me mandar dinheiro…”
Mostra o bilhete de comboio e a última morada. Um dos homens explica-lhe, então, que terá de mudar em Irun. Lá chegados, vêmo-la ficar para trás no cais, as duas crianças pela mão e a mala aos pés. Não fala uma palavra de francês.
“Aquilo, o gajo arranjou outra e nem mora no mesmo sítio!”, diz um dos homens. Os outros concordam.
Alguém começa a comer uma bifana fria e o cheiro a pobreza cola-se à carruagem.

5 comentários:

henedina disse...

Nem o país das maravilhas.

Manuel Vilarinho Pires disse...

Ana,
É mesmo assim, digo-o do alto da minha cátedra de emigrante passivo, ou seja, de miúdo que passou sempre férias no Minho num meio cheio de emigrantes e, até, com emigrantes na família, e gostei muito de ler uma crónica que consegue fugir aos habituais endeusamento do emigrante-trabalhador que não se mete em greves slot-machine das remessas, e ridicularização do emigrante-parolo ainda por cima fura-greves, e tratá-los apenas como pessoas.
E, como emigrante passivo, também vivi muitas histórias, desde a do emigrante de botas texanas e blusão com franjas à Buffalo Bill que o meu primo João me industriava para entrar no café, dizer-lhe "váteférranquiulê" e sair a correr, que ele vinha atrás, mas eu corria mais, à do jovem barbeiro que todos os anos trazia o cabelo de uma côr diferente e um carro diferente, e caro, o último que me lembro de contabilizar era um Alpine, que em França os cabeleireiros deviam ganhar uma pipa de massa, ou outra coisa qualquer, e todos os anos espetava o carro e o deixava na sucata, à do próprio João, que nunca se furtava a resolver um assunto à porrada quando era necessário, e naquela altura, e naquela idade, havia muitos assuntos que se resolviam à porrada, mas, numa despedida de férias, a entrar no bote para atravessar o rio Minho e apanhar o comboio galego, que naquele ano, não me lembro porquê, não tinham vindo no VW, chorava perdidamente, e eu sem perceber porque chorava, ele que nunca chorava. Sanfurien...
Obrigado, e bom ano.

Ana Cristina Leonardo disse...

manuel, eu tenho um enorme respeito pelas pessoas que emigraram. acho que é um acto de coragem.
bom ano, para si!

fallorca disse...

É isso, leoparda :)

AEfetivamente disse...

Muito engraçada ... a forma como faz o retrato do fenómeno.