Como não me canso de dizer: está tudo na literatura.
Numa entrevista feita há uns anos (com Francisco Belard) a Enrique Vila-Matas, o espanhol explicou-o de modo claro: “(…) quando alguém me diz ‘Sabes o que aconteceu? Foi horrível!’, e conta uma história, dramática mas sem o ser demasiado, mais do que preocupar-me com o que se passa, e que é passageiro, sou tentado a ajudar essa pessoa explicando-lhe que isso já foi contado por Perec ou Flaubert numa novela curta. (…) Quanto mais se leu, mais coisas se sabe que aconteceram. O marido que tem uma mulher como Madame Bovary; não é assim tão dramático, está contado por Flaubert, repetiu-se muitas vezes.”
Ter lido Flaubert não aliviará ninguém do tédio do seu próprio casamento, embora ajude com certeza a pôr as coisas em perspectiva.
Foi o que pensei ao tropeçar por acaso numa frase de Dostoievski retirada a Crime e Castigo: “ (…) o senhor Lebeziátnikov, que acompanha as ideias novas, explicou há dias que, nos tempos que correm, a compaixão até está proibida pela ciência e que assim se passa na Inglaterra onde existe economia política”.
A economia política anda hoje pelas ruas da amargura. Ou com maior exactidão: a economia política anda a deixar uma caterva de gente pelas ruas da amargura. Não que a compaixão esteja proibida pela ciência: ao invés, é a própria ciência a confirmar que não fora a compaixão e já teríamos ido todos para o galheiro, contrariando, felizmente, as convicções do professor Vergerus em O Ovo da Serpente: “A antiga sociedade baseava-se em ideias românticas sobre a bondade humana. (…) essas ideias não concordavam com a realidade. A nova sociedade basear-se-á numa avaliação realista das potencialidades e limitações do homem. O homem é uma deformidade, uma perversão da natureza.”
Podemos, perante tais ideias, continuar a assobiar para o lado; a verdade é que está tudo nos livros. E no cinema. Apesar de Ingmar Bergman ter dito que “film has nothing to do with literature”. Falava, claro, de outra coisa. Eu própria, às vezes, não sei bem do que falo. Mas que me cheira mal, cheira.
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2 comentários:
Perante um texto desta beleza e oportunidade, urge comentar, ainda que seja apenas para não dizer nada.
Dado que o comentário de cima me permite...
Enrique Vila-Matas por Gonçalo M. Tavares é para mim das 3 melhores sínteses do livro a Biblioteca.
(eu acho o Gonçalo M.Tavares um convencido, com imaginação e humor mas convencido - tem lá: dos sujeitos que conheço, das mulheres que dormi e da literatura salvava a literatura - ou seja, eu, dado que sou escritor. Nem se livra com o titulo do livro qq coisa como "homem ou é tonto ou é mulher")
Deliciosa a de E.Vila-Matas. E Stendhal e uma acerca de "na tortura, na sedução, etc" não sei já de quem.
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