24/07/11

A book a day keeps the doctor away: "Nas Trevas Exteriores", Cormac McCarthy

Talvez Emmanuel Levinas estivesse certo quando escreveu: "A questão metafísica primordial já não é a de Leibniz, de saber porque existe algo em vez de nada, mas porque existe mal em vez de bem".
Não sei se Cormac McCarthy leu Levinas; o facto é que é dos poucos escritores contemporâneos a pegar a besta de caras.
Nas Trevas Exteriores – “Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes (Mateus, 22: 13) – é o seu mais recente livro publicado em Portugal. Data originalmente de 1968 e trata-se do segundo romance assinado pelo autor de Este País Não É Para Velhos.
Culla e Rinthy Holme são irmãos; a história começa com o nascimento de uma criança fruto da relação incestuosa entre ambos. Culla livra-se do recém-nascido, abandonando-o na floresta, e tenta convencer a irmã de que o bebé morreu após o parto. Quando Rinthy se apercebe da mentira, foge da cabana miserável onde os dois vivem escondidos e lança-se em busca do filho. Culla segue-lhe os passos e parte no seu encalço.
Nas Trevas Exteriores é o relato dessa errância, organizado em capítulos autónomos e desacertados, numa espiral de vagarosa violência que amplia a angústia do leitor. Como diz cirurgicamente no Prefácio Paulo Faria, o tradutor, confrontamo-nos “com uma experiência de genuíno desconforto físico, e a intensidade desse desconforto traduz a exacta medida da mestria literária de Cormac McCarthy”.
A escrita do americano é tudo menos consoladora. “God is war”, garantia o desapiedado juiz Holden em Meridiano de Sangue, personagem de quem podemos adivinhar alguns dos traços, aqui, em Trevas Exteriores, na trindade funesta com quem Culla se cruza ao longo do seu deambular vagabundo e sonâmbulo:
“Pra ondé que tu ias, vamos lá a saber?
Pra lugar nenhum, respondeu Holme.
Pra lugar nenhum.
Isso.
Ainda és capaz de lá chegar, comentou o homem. Caminhou ao longo da orla do fogo e deteve-se, olhando Holme de alto. Holme via-lhe apenas as pernas e as de Harmon, um pouco mais além. O lume esmorecera e havia somente uma única labareda em forma de língua de serpente, bífida e amarela, a assomar entre as brasas. Um terceiro par de botas acercou-se e Holme olhou-as. Tinham as biqueiras ligeiramente voltadas para dentro e estavam calçadas nos pés trocados.
Não é tudo, pois não? indagou o homem.
Eu cá não tenho mais nada, declarou Holme.”


Descendente de uma tradição sulista que inclui nomes como Flannery O’Connor ou William Faulkner, Cormac McCarthy combina, como aqueles, o sentido da tragédia humana com o grotesco, laço bem visível em alguns diálogos que roçam a idiotia ou, quiçá, a genialidade:
“E o qué um casco-de-mula? perguntou Holme. (...)
Têm a unha assim comá da mula.
Queres dizer que não têm o casco fendido?
Não têm fenda nenhuma.
Nunca na minha vida vi nenhum porco desses, disse Holme.
Isso não me espanta, comentou o porqueiro. Mas olha que podes aqui ver um, se tiveres isso na vontade.
Eu até gostava, disse Holme.
O porqueiro tornou a trocar o cajado de um braço para o outro. Dá-me impressão que isto vai contra o que diz a Bíblia, o qué que tu achas?
Sobre o quê?
Sobres estes porcos. Que são impuros por causa de terem o casco fendido.
Eu cá nunca ouvi dizer tal coisa, disse Holme.
Eu ouvi um pregador a dizer isto num sermão. O fulano sabia imenso do assunto. Disse que o demónio tinha a pata comá dos porcos. Jurou que ‘tava escrito na Bíblia, por isso eu acho que deve de ‘tar.
Também acho.
Disse que os judeus não comiam carne de porco por causa disso.
O qué isso, os judeus?
São umas gentes antigas que vêm na Bíblia. Mas ainda assim, isso não nos diz nada sobre um porco casco-de-mula, pois não? Em qué que ficamos, afinal?
Não sei, respondeu Holme. Em qué que ficamos?
Bom, afinal de contas é um porco ou não é? A fazer fé na Bíblia.
Eu cá diria que um porco é um porco, mesmo que nem sequer tenha patas.
Eu sou capaz de dizer o mesmo, concordou o porqueiro, porque, caso tivesse patas, a gente ‘tava à espera que fossem patas de porco. É como se um porco não tivesse cabeça, a gente continuava a perceber que era um porco, apesar de tudo. Mas se víssemos um porco a andar por aí com uma cabeça de mula, já a pessoa era capaz de ficar baralhada.
É verdade, anuiu Holme.
Sim, senhor. Faz um tipo pôr-se a matutar um bocado sobre a Bíblia e também sobre os porcos, hem?”
As conotações bíblicas da obra de McCarthy estão por demais assinaladas. A forma blasfema como transfigura linguagem e conteúdos sagrados, denuncia, porém, um feroz pessimismo ontológico, arredado de qualquer escatologia redentora: o Mal é uma realidade, não uma simples ausência de Bem.
Assim acontece neste título. A queda do casal de irmãos pelo pecado do incesto traduz-se num caminho sem expiação. Culla Holme, culpado do abandono da criança, vai semeando (involuntariamente?) um rasto de morte à sua passagem; Rinthy, na sua quase inocência, consegue escapar à vivência directa do inferno, para atravessar o livro num limbo de desespero silencioso.
Fantasmas andarilhos, ambos, personagens de uma estranha parábola que, apesar da absoluta materialidade da escrita de McCarthy, surge envolta num manto de irrealidade, são o Adão e Eva deste romance negro, tragédia anunciada nos pequenos textos a itálico que moram entre capítulos. E depois (ou antes de tudo) há o cego. Poderá a cegueira salvar-nos? Existirá salvação?
Nas mãos do leitor, um exemplo de genialidade literária e desassombro.
Nas Trevas Exteriores, Cormac McCarthy, 2011, Relógio D´Água, tradução de Paulo Faria

17 comentários:

fallorca disse...

«“Pra ondé que tu ias, vamos lá a saber?
Pra lugar nenhum, respondeu Holme.
Pra lugar nenhum.
Isso.
Ainda és capaz de lá chegar, comentou o homem.»
Nem li o resto... Não podias esperar mais uns dias?

Ana Cristina Leonardo disse...

tens que ler o diálgo sobre os porcos!

fallorca disse...

Leio mas é TUDO e de pescadinha de rabo na boca.
E é já amanhã :)

Anónimo disse...

Na sua catilinária anti-Pitta acusa o crítico de não ter lido Nas Trevas Exteriores. E em que parte da crítica do Expresso fica claro que a Ana Cristina leu o livro? Se um bebé não é um recém-nascido... vou ali e já venho. Não lhe parece que "feroz pessimismo ontológico, arredado de qualquer escatologia redentora" é o tipo de foguetório de que acusa Pitta? E quais são as "conotações bíblicas da obra de McCarthy". Eu não li o livro mas por causa da sua catilinária fui comprar a Sábado e fiquei com vontade de o ler. O Pitta despertou-me essa curiosidade. Agora, depois de ler o Atual ("Genialidade literária e lancinante desassombro"), estou desconfiada.

Ana Cristina Leonardo disse...

bom, nesse caso julgo que ainda estará a tempo de desistir e optar antes pela patrícia reis

Ana Cristina Leonardo disse...

(...) mas eliminei o lancinante; era quase tão mau como incontornável...

Anónimo disse...

Há 20 anos, mais coisa menos coisa, a Helena Roseta fez um abaixo-assinado (com + de 60 subscritores) para despedir o António Guerreiro do Expresso porque ele tinha dito mal de um livro do Fernando Dacosta. Repelente. Mas Você leva a palma à arquiteta: diz mal da concorrência porque se sentiu picada, enfiando a carapuça dos atuais devotos. Queria ser a primeira, quiçá a única, a escrever sobre este livro? Não concordo com muita coisa do que Eduardo Pitta escreve. Mas Você tem de comer muito pão para lá chegar. Basta comparar o que ambos escreveram com 15 dias de intervalo. Salema Garção

Ana Cristina Leonardo disse...

Salema Garção, quais devotos? Fiquei baralhada.

Filipa Soraia disse...

Ana Cristina, talvez queira também retirar o “Surge envolto num manto de irrealidade”. Caneco, o surge envolto num manto, de mistério, de neblina, de tristeza, de irrealidade, está a tornar-se incontornável. Parecendo que não, há mesmo coisas incontornáveis e temos de as eliminar como o pacman.

Ana Cristina Leonardo disse...

o "envolto", de facto, não é feliz. mas agora tenho que ir almoçar

Um Jeito Manso disse...

Cara Ana Cristina Leonardo,

Ao ler no último Expresso a sua recensão sobre o autor de que Eduardo Pitta também tinha falado e que desencadeou a sua total rejeição, ocorreu-me fazer uma breve análise comparativa, na qualidade de leitora e não de especialista na matéria, entre o seu texto e o que, na mesma edição, Pedro Mexia esreveu sobre Lobo Antunes.

Se quiser dar uma vista de olhos, aqui lhe deixo o convite:

http://umjeitomanso.blogspot.com/2011/07/ana-cristina-leonardo-anti-pitta-e.html

A bem da escrita, a bem da exigência compreensiva e a bem das saudáveis polémicas.

Tenha um bom dia, Ana Cristina.

Ana Cristina Leonardo disse...

Jeito Manso, faça favor e, sobretudo, que a polémica seja o mais compreensiva e saudável possível.
Há por aí umas coisinhas sobre o António Lobo Antunes nas ETIQUETAS da Pastelaria que talvez lhe possam interessar.

João Lisboa disse...

Leopardo: vais recolher estes comentários todos (se quiseres, ofereço-te, de borla, os que escorreram daqui para o meu tasco), junta-los todos num opúsculo em edição de autor - coisa baratucha - e vais ver que se vende que nem pãezinhos.

Sugestão de título: "Leopardo vs Eduardo (ou o Livro da Selva - parte II)".

Vai por mim.

fallorca disse...

O Cormac, já canta... aviei 1/3 no Café no Chiado.
Tive de meter travões...

Ana Cristina Leonardo disse...

Tu achas mesmo, João? E editados ou tal & qual, fofinhos mesmo?

João Lisboa disse...

Tal qual. Rough cut.

fallorca disse...

Clarooooooooo, sua trenga!