12/03/11

Geração parva

Sonhei que chegava ao trabalho e me sentava para a reunião de passagem de turno. Ninguém falava, mas à segunda-feira as coisas arrancam devagar. Olhei, interrogativo, a Valéria, que fizera o turno da noite. Como ela se mantivesse calada, disse, sem elevar a voz: — Podemos começar. A Valéria olhou nervosamente para os apontamentos. — Aconteceu alguma coisa? —perguntei, enquanto procurava os olhos da Júlia. A Júlia é a chefe de serviço e coordenadora do departamento. Quando me esqueço de alguma coisa — o que sucede com alguma frequência nos últimos anos — ela toma a palavra com naturalidade. Também me substitui em algumas conferências e, desde Janeiro, acompanha-me às reuniões do Conselho. Mas a Júlia não levantou os olhos. Então, do lado esquerdo, aproximou-se o Rogério, o jovem promissor que o Conselho contratou em Novembro, e, com aquela voz mansa que sempre me irritou levemente, disse: —Precisamos de falar.
— Depois de receber o turno, se não se importa — respondi, com autoridade.
— Acho que o senhor ainda não percebeu, Dr. Santos, nós já passámos o serviço — continuou o Rogério, sempre de pé, ligeiramente inclinado, do meu lado esquerdo.
Voltei a procurar a Júlia e pela segunda vez ela me falhou.
— Achámos que chegou a hora de ser substituído na direcção da empresa, Dr. Santos. Espero que compreenda essa necessidade e se integre no Novo Espírito, como a esta hora está a suceder por todo o lado, neste país, e em toda zona mediterrânea.
— Mas substituído por quem, ó Rogério ? E por ordem de quem? E por alma de quem? — tentei ironizar, calando prudentemente a minha surpresa pela erudição geopolitica do Rogério.
— Por mim - respondeu o rapaz. Ordens do Conselho, interpretando o Movimento a que pertenço.
— Do Conselho? — interroguei perplexo?
— De alguns membros do Conselho — explicou ele, tolerante. — Os mais jovens.
— Mas porquê você, Rogério? — comecei eu, jogando na divisão, e olhando cúmplice para a assistência. — Você, Rogério, tem um contrato magnifico, bem mais vantajoso do que o meu, ao que julgo saber. E, se se trata de promover uma renovação geracional, por que não dar o lugar à Dra. Júlia, muito mais preparada que você, caro Rogério, perdoe a franqueza.
— A Dra. Júlia faz parte da classe que deteve o poder, Dr. Santos, ou esteve perto dele, ou perto da geração do poder. As coisas mudaram, queira deixar essa cadeira.
Tentei protestar. — Cidália, tu que tanto protegi. — Fernando, que levei à conferência de Munique. — Serena, o que vai ser do teu projecto de doutoramento?
Levantei-me da cadeira. Igual às outras, afinal. Mas, pela colocação na sala e pelo uso que eu lhe dera, simbolizava a minha tíbia direcção. Se alguma coisa sei é a força que têm os símbolos. E também sei que em épocas destas é preciso respeitar gente como o Rogério e os membros mais jovens do Conselho. Tenho a pensão da minha mãe para defender — nem tudo está perdido.

2 comentários:

Manuel Vilarinho Pires disse...

O jovem (e menos jovem) das fotos pode parecer parvo.
Mas quem faz isto...
http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1405031&seccao=EUA%20e%20Am%E9ricas
...não deve ser nada parvo!

Ana Cristina Leonardo disse...

Manuel, eu não chamei parvo ao "boneco"