27/03/11
A book a day keeps the doctor away: "Ponto Ómega", Don DeLillo
Ponto Ómega não é um haiku, apesar de a sua contenção estar mais próxima do despojamento da forma japonesa do que da torrente épica de outros títulos, como, por exemplo, Submundo. No seu último romance, DeLillo oferece-nos apenas um trio de personagens e uma trama que se organiza, também ela, em três momentos breves. No primeiro, chamemos-lhe prólogo, assistimos a 24 Hour Psycho, vídeo-instalação criada por Douglas Gordon (um artista de carne e osso que esteve recentemente em Portugal a convite do Estoril Film Festival) e que, resumidamente, consiste na projecção do clássico de Hitchcock a um ritmo de dois fotogramas por segundo, estendendo-se, assim, por 24 horas. No segundo, somos transportados para o deserto do Arizona, retiro de Richard Elster, velho intelectual que serviu o Pentágono durante a guerra do Iraque e que acaba de receber em casa o jovem realizador Jim Findley, cujo sonho é fazer com ele um filme com um único plano-sequência. Aos dois juntar-se-á Jessie, filha de Elster, personagem que empurrará Ponto Ómega para um registo – chamemos-lhe thriller metafísico – próximo das atmosferas de Cormac. Por fim, o terceiro momento, em que regressamos de novo a 24 Hour Psycho e, assim, ao misterioso anónimo (quarta e obscura personagem, talvez Dennis, talvez o próprio autor, DeLillo...) que assistia já à sua projecção no prólogo: Havia um homem de pé, encostado à parede norte, quase invisível. Resumida a coisa de forma a não estragar o suspense (que o há), diga-se que Ponto Ómega é um livro estranho, a transbordar de referências políticas, filosóficas, cinematográficas, feito, apesar do seu reduzido número de páginas, para se degustar e não para se engolir de um trago (primeiro estranha-se, depois entranha-se). Um governo é uma iniciativa de carácter criminoso, escrevera Elster num ensaio antigo sobre o qual conversa agora com Findley. Eis uma frase que podíamos facilmente atribuir ao próprio DeLillo, crítico assumido da política norte-americana, mas que nos chega antes pela mão de um neoconservador (os neocon americanos assumem sem peias o seu cinismo e sabem que a guerra não é uma partida de canasta): O Estado tem de mentir. Não há nenhuma mentira na guerra ou na preparação para a guerra que não seja defensável. Nós fomos ainda mais além, resume. Inventariam, pois, uma nova forma de ver o mundo, assente em palavras e significados que, à maneira de um haiku, pretendia dar a ver o essencial: Eu queria uma guerra em haiku. (...) Queria uma guerra em três versos, diz Elster a dada altura. O tema do haiku remete-nos para a dimensão filosófica de Ponto Ómega, traduzida aqui nos fotogramas de Psycho. Cada um deles como que evidencia a natureza vital da experiência, à semelhança da forma japonesa onde se ensaia a Iluminação a partir da visão dos contrários, de acordo com o Zen, embora DeLillo prefira seguir pelos caminhos desbravados por Teilhard de Chardin, jesuíta vigiado pela Igreja que desconfiava dele e do seu darwinismo teológico – do seu “ponto ómega”: epifania da Consciência para onde converge inevitavelmente o mundo. Elster, cansado dos exércitos portadores do gene para a autodestruição, interpretará o conceito livremente (e DeLlilo com ele): Teremos de ser humanos para sempre? A consciência está exaurida. Regressemos à matéria inorgânica. É isso que nós queremos. Queremos ser pedras no meio do campo. E será, de certa forma, a essa condição que regressa Jessie, a filha, mas porque Ponto Ómega é um romance e não um ensaio, a epifania dela arrasta infortúnio e angústia. Chegados aqui, talvez possamos, contudo, ensaiar outra leitura e optar, como em Vertigo, por reencontrá-la no epílogo a assistir a 24 Hour Psycho, alheios às incongruências do tempo que, como sabia Henri Bergson (filósofo lido por Chardin), ou é invenção ou não é nada. Ponto Ómega, Don DeLillo, Sextante Editora, trad. de Paulo Faria, 128 págs.
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5 comentários:
Li-o ontem e gostei (o meu único problema com os mais recentes DeLillos é, como o Casanova uma vez referiu no blogue dele, terem perdido quase todos os toques de humor). Não consegui ver a outra leitura que propõe para a presença da rapariga no museu. Até porque, na página 51, Finley diz a Jessie que fora ver 24 Hour Psycho com o pai dela e ela responde que o pai lhe dissera e que ela própria lá fora no dia seguinte. Ora o segmento inicial - onde o homem no museu vê o velho da bengala acompanhado pelo homem mais novo - passa-se a 3 de Setembro e o final - em que vê a rapariga - a 4 de Setembro. Tudo parece assim indicar que ambos os segmentos ocorreram antes dos capítulo intermédios. E que, de facto, o homem que no museu era Dennis: no final, ele fica com o número de telefone da rapariga e a mãe de Jessie descreve sempre Dennis em termos que remetem para lentidão (ficou parado sem dizer nada quando se conheceram, não falava ao telefone, mesmo na ocasião em que ela também não o fez).
Mas eu tenho o defeito - que me esforço por combater, juro - de tender a ver as coisas de modo demasiado literal...
:)
Ainda não o li, porque o quero ler em inglês, a a minha cunhada que frequenta o British ali ao pé da fac. de Ciências (Lxª) ainda não teve ocasião de me-lo trazer. (Estou sem carro, está numa Peugeot qualquer a arranjar...)
Em compensação, li este e gostei muito:
Naomi Klein - The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism (2007)
Metropolitan Books, 576 páginas, ISBN: 0805079831
JAA,
Dado o adiantado da hora não sei se percebi bem o seu comentário. Mas, assim de repente, pareceu-me que estavamos de acordo. Ou não?
Completamente. Eu só estava a dizer que, depois de unir os pontos, me fiquei pela imagem que obtive (relativamente simples e racional) e não cheguei à possibilidade a que alude na última linha da recensão. As centenas de policiais que li na adolescência (e como adorava as mentes lógicas de Sherlock Holmes, Ellery Queen e Sir Henry Merrivale) não podiam deixar de ter consequências.
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