Estava Carles Álvarez Garriga à conversa com a primeira mulher do argentino na casa que fora de ambos em Paris quando Aurora Bernárdez, 86 anos e testamentária do escritor, decide mostrar-lhe uma “gaveta transbordante”... Garriga não diz assim, mas supõe-se que ficou salivante e gago. O episódio vem contado no Prólogo assinado pelo professor e crítico espanhol, o responsável pela edição de Papéis Inesperados, acontecimento literário que deixou aos pulos os amantes de Cortázar.
Em jeito de miscelânea e forma de almanaque, “modelo para armar” que o próprio não desdenharia, Papéis Inesperados dirige-se, em primeiro lugar, aos leitores habituais do autor de Rayuela. Inéditos, variantes e dispersos compõem o volume, grosso de 400 páginas. A organização fez-se como se pôde: textos em prosa, entrevistas e poemas. Várias subsecções que vão da ficção à política, reflexões sobre arte, crónicas de viagens e simples divertimentos. Etc. No total, 110 textos, nem todos, claro, de idêntica qualidade. Lidos em desordem, o conjunto recomenda-se.
Confrontamo-nos com a habitual e inesgotável curiosidade de Cortázar, o seu humor, o seu olhar moderno e fragmentário capaz de dar a ver o insólito por detrás da normalidade do real e da linguagem normativa. Autor dos que revolucionaria a literatura do século XX e faria da imaginação a pedra de toque (talvez mesmo a “condição da arte” de que falava Borges), Cortázar, lúdico (conceito fundamental que o descarta do experimentalismo descarnado) e iconoclasta, sobrevive ao tempo e à gaveta. Mas também presente em Papéis Inesperados o Cortázar político, o amante de Cuba, o militante anti-imperialista a precisar do enquadramento das sanguinárias ditaduras da época (cabe sublinhar a auto-entrevista, ao jeito de Capote, escrita para a edição em espanhol da imperialista “Life”).
Os leitores habituais confirmarão a paixão. Os que o desconhecem poderão ficar não só com uma ideia das principais linhas com que se cose a obra mas também da sua evolução, já que os textos reunidos cobrem a quase totalidade da vida literária de Cortázar. Ser-lhes-á permitido, por exemplo, aproximar-se do seu universo de “cronópios e famas” (entidades criadas no livro de 1962, Histórias de cronópios e de famas), e do qual se oferecem aqui inéditos, ou rir-se com os episódios não incluídos em Um tal Lucas, a personagem/protagonista homónima desse seu volume de contos.
Impagável por exemplo, este pequeno divertimento linguístico: “Às vezes as pessoas não entendem a forma como fala Matilde, mas a mim parece-me muito clara. — O escritório vem às nove — diz-me — e por isso às oito e meia o meu apartamento sai-me e a escada resvala-me rapidamente porque com os problemas do transporte não é fácil que o escritório chegue a tempo. O autocarro, por exemplo, na esquina o ar está quase sempre vazio, a rua passa depressa porque eu a ajudo atirando-a para trás com os sapatos; por isso o tempo não tem de esperar por mim, chego sempre primeiro. Por fim, o pequeno-almoço põe-se em fila para que o autocarro abra a boca, vê-se que gosta de nos saborear até ao último. Tal como o escritório, com aquela língua quadrada que vai subindo as sanduíches até ao segundo e ao terceiro andar.”
Em jeito de miscelânea e forma de almanaque, “modelo para armar” que o próprio não desdenharia, Papéis Inesperados dirige-se, em primeiro lugar, aos leitores habituais do autor de Rayuela. Inéditos, variantes e dispersos compõem o volume, grosso de 400 páginas. A organização fez-se como se pôde: textos em prosa, entrevistas e poemas. Várias subsecções que vão da ficção à política, reflexões sobre arte, crónicas de viagens e simples divertimentos. Etc. No total, 110 textos, nem todos, claro, de idêntica qualidade. Lidos em desordem, o conjunto recomenda-se.
Confrontamo-nos com a habitual e inesgotável curiosidade de Cortázar, o seu humor, o seu olhar moderno e fragmentário capaz de dar a ver o insólito por detrás da normalidade do real e da linguagem normativa. Autor dos que revolucionaria a literatura do século XX e faria da imaginação a pedra de toque (talvez mesmo a “condição da arte” de que falava Borges), Cortázar, lúdico (conceito fundamental que o descarta do experimentalismo descarnado) e iconoclasta, sobrevive ao tempo e à gaveta. Mas também presente em Papéis Inesperados o Cortázar político, o amante de Cuba, o militante anti-imperialista a precisar do enquadramento das sanguinárias ditaduras da época (cabe sublinhar a auto-entrevista, ao jeito de Capote, escrita para a edição em espanhol da imperialista “Life”).
Os leitores habituais confirmarão a paixão. Os que o desconhecem poderão ficar não só com uma ideia das principais linhas com que se cose a obra mas também da sua evolução, já que os textos reunidos cobrem a quase totalidade da vida literária de Cortázar. Ser-lhes-á permitido, por exemplo, aproximar-se do seu universo de “cronópios e famas” (entidades criadas no livro de 1962, Histórias de cronópios e de famas), e do qual se oferecem aqui inéditos, ou rir-se com os episódios não incluídos em Um tal Lucas, a personagem/protagonista homónima desse seu volume de contos.
Impagável por exemplo, este pequeno divertimento linguístico: “Às vezes as pessoas não entendem a forma como fala Matilde, mas a mim parece-me muito clara. — O escritório vem às nove — diz-me — e por isso às oito e meia o meu apartamento sai-me e a escada resvala-me rapidamente porque com os problemas do transporte não é fácil que o escritório chegue a tempo. O autocarro, por exemplo, na esquina o ar está quase sempre vazio, a rua passa depressa porque eu a ajudo atirando-a para trás com os sapatos; por isso o tempo não tem de esperar por mim, chego sempre primeiro. Por fim, o pequeno-almoço põe-se em fila para que o autocarro abra a boca, vê-se que gosta de nos saborear até ao último. Tal como o escritório, com aquela língua quadrada que vai subindo as sanduíches até ao segundo e ao terceiro andar.”
Papéis Inesperados, Julio Cortázar, Cavalo de Ferro, 2010, trad. de Sofia Castro Henriques e Virgílio Tenreiro Viseu
1 comentário:
Cantas bem, mas não me encantas. Se te desse ouvidos entesavas-me em menos de um fósforo e não tinha tempo para ler tanto.
Aduelemos, irmã...
(Sendo Gémeos, hoje quem faz de Castor e de Polux? Pensa nisso)
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