O título de Stig Dagerman, “A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer”, poderia estar inscrito no túmulo de Jean Améry, ao lado do seu número de prisioneiro de Auschwitz que realmente aí figura.
Até agora, escandalosa e inexplicavelmente ignorado em Portugal, Jean Améry, nascido Hans Mayer na Viena de 1912, de mãe católica e pai judeu, escreveu algumas das mais radicais e complexas reflexões sobre o Holocausto, sendo um autor de importância semelhante a Primo Levi, com quem, aliás, partilhou o cativeiro em Auschwitz-Monowitz, ambos adstritos à IG Forben que aí produzia borracha sintética à custa de trabalho escravo. Mas se a relação particular de Améry ao judaísmo – de família assimilada (o pai morre na I Guerra Mundial e ele será educado no cristianismo pela mãe), é preso e torturado pelas SS pela sua resistência política ao regime hitleriano, acabando por ser enviado para Auschwitz enquanto judeu – não explica, com certeza, o seu olhar despido de sentimentalismo, talvez o facto da judeidade lhe ter sido imposta do exterior – nesse número gravado no braço e depois no túmulo, despojando-o, ao mesmo tempo, de identidade e cultura (alemã, de que mantém a língua mas não o nome) – esteja relacionado com a busca de um lugar de liberdade e libertação que é, neste ensaio, o lugar ocupado pelo acto do suicídio.
“Atentar contra si – Discurso Sobre a Morte Voluntária” antecede em dois anos o desaparecimento de Améry, que acaba por morrer de overdose de comprimidos em 1978, e assume-se, desde logo, como um não-tratado de suicidologia. As estatísticas não lhe interessam, assim como não lhe interessam a psicologia ou a sociologia. Reflexão livre, alicerçada na experiência, também não se poderá classificá-la como uma apologética da morte voluntária. Mais próximo da filosofia, o livro tem a seu favor, apesar da contenção e secura da escrita, um substrato vivencial que o “humaniza”, dando-nos a ler um pensamento assinado que não esconde interrogações nem contraditoriedades. Com posfácio e notas de Pedro Panarra, aguarda-se agora que alguém se decida a publicar ”Para além da Culpa e da Expiação”.
Jean Améry, Atentar Contra Si. Discurso Sobre a Morte Voluntária, Assírio & Alvim, 2009
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5 comentários:
É muito possível que a Assírio e Alvim venha a publicá-lo.
Oxalá!!!
Boa noite Ana Cristina. Admirei-me de haver quem tenha lido o Améry em Portugal, como parece ser o seu caso. Na Alemanha está completamente esquecido, embora não seja assim nos EUA.
A Assírio tem a ideia de o publicar, mas não está confirmado, pelo que convém ser cuidadoso. É muito mais fácil de traduzir do que este, mesmo muito mais.
Leu-o em alemão?
Um abraço para si.
Pedro Panarra
Pedro, primeiro, deixe-me agradecer-lhe por ter visitado o meu humilde tasco. Depois, deixe-me dizer-lhe o quão curiosa achei a sua pergunta numa altura em que, na verdade já há algum tempo, decido levar mesmo avante o desejo de aprender alemão. Quanto ao Amèry, li-o em francês.
E espero que a Assírio avance mesmo com a tradução. Abraço,
Ana
Não tenm de quê. Uma pastelaria bem divertida. Não demore a começar, pois com dedicação conseguirá ler, mesmo que não fale nem perceba uma conversa corrente. Com um ano e meio de trabalho já será capaz de começar a ler Kafka que é o mais fácil (de perceber, claro está) dos bons escritores.
Se o tradutor francês é quem julgo ser, a tradução deve ser um pouco fantasistaÓs franceses traduzem com uma liberdade recreativa que me parece pouco adequada à prosa.
Um abraço,
Pedro
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