Logo a abrir o protagonista/narrador informa os seus leitores: “Sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne”. Publicado originalmente em 1948 (e já antes traduzido em Portugal), O Túnel foi a primeira incursão de Ernesto Sabato na ficção. No conjunto, apenas três obras: a que agora se reedita, o magistral Heróis e Túmulos, 1961 (com edição na Europa-América em 1973), e Abaddón el Exterminador, 1974, que eu saiba nunca passado para português.
Ex-homem de ciência que um dia abandonou a física nuclear para se dedicar aos livros (além da triologia romanesca, tem obra ensaística de peso), cidadão comprometido com o seu tempo (foi comunista e admirado pelos existencialistas, nomeadamente por Camus que não pouparia elogios a O Túnel), diria o escritor argentino da relação entre ideias e literatura: “Um crítico alemão perguntou-me porque é que nós, latinos-americanos, temos grandes romancistas mas não grandes filósofos. Porque somos bárbaros, respondi-lhe, porque por acaso nos salvámos da grande cisão racionalista”. E é precisamente disso que não se salva Pablo Castel, o assassino de María Iribarne.
Escrito na primeira pessoa, é o próprio Pablo quem nos vai narrando a sua obsessão: como conhece María, como se torna seu amante, como o amor entre eles vai crescendo, como o mesmo se vê pouco a pouco corroído pelos ciúmes... até ao desenlace fatal. Amor e loucura vão aqui de mãos dadas e, chegados ao fim, como a Capitu de Machado, nada podemos garantir sobre María Iribarne, aquela que, segundo o seu próprio carrasco, fora a única a compreender-lhe a pintura. Escrito com a precisão de um relojoeiro louco, O Túnel conduz-nos pelos trilhos e abismos de uma cabeça exacta, lógica, capaz de criar o seu próprio inferno (ajudado apenas por uma imaginação delirante?). Metáfora da criação artística? Do estado do mundo? Seja o que for, uma obra-prima.
O Túnel, Ernesto Sabato, 2009, tradução de Francisco Vale, Relógio D'Água
O Túnel, Ernesto Sabato, 2009, tradução de Francisco Vale, Relógio D'Água
4 comentários:
ai, ai, que eu tenho que me disciplinar e ler, que as pistas para boas leituras andam a entrar-me pelos olhos e vão direitinhas aos neurónios.
N, organizada ou desorganizada não te esqueças, POR FAVOR, de As Meninas de Numídia, Mohamed Leftah, publicado pela Quetzal. A coisa mais extraordinária que li este ano.
"As Meninas de Numídia, Mohamed Leftah, publicado pela Quetzal. A coisa mais extraordinária que li este ano." Subscrevo inteiramente, mas eu sou só uma simples leitora, não sou profissional da coisa como a Ana Cristina :) Já o recomendei várias vezes a diferentes pessoas
Ai. Obrigada, cara conselheira literária.
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