Eles só estavam interessados em puxar-lhe os cabelos. Não queriam fazer-lhe mal. Arrancaram-lhe a cabeça à primeira. Com certeza estava mal presa. Não costumam sair assim. Com certeza faltava-lhe qualquer coisa.
Quando já não está assente nos ombros é um estorvo. Devemos oferecê-la. Mas é preciso lavá-la, pois suja a mão de quem a recebe. É preciso lavá-la. Porque aquele que a recebe, com as mãos já cobertas de sangue, começa a suspeitar e começa a olhar como se esperasse informações.
― Pois claro! Tinham-na encontrado enquanto jardinavam... Tinham-na encontrado no meio de outras... Tinham-na escolhido porque parecia a mais fresca. Mas se ele quisesse trocá-la... podia dar-se um jeito. Até ver, ficasse com aquela...
E afastam-se, seguidos por um olhar que não diz sim nem não, um olhar fixo.
E se fôssemos ver ao pé do lago? Num lago encontram-se imensas coisas. Talvez um afogado resolvesse o caso.
Num lago imaginamos sempre que vai encontrar-se aquilo que queremos. Mas voltamos depressa, e voltamos de mãos a abanar.
Onde encontrar cabeças prontas para serem oferecidas? Onde é que podemos encontrá-las sem haver muitas complicações à mistura?
― Eu cá tenho o meu primo-direito. Pode muito bem dizer-se que eu e ele temos a mesma cabeça. E ninguém vai acreditar que a encontrei por acaso.
― Eu cá... tenho o meu amigo Pierre. Mas não é de força a deixar que lha tirem só assim.
― Pois claro! Veremos. A outra foi muito fácil de arrancar.
E com esta se afastam, obcecados pela sua ideia, e chegam à casa do Pierre. Deixam cair um lenço. O Pierre abaixa-se. Como se quisessem levantá-lo puxam-lhe os cabelos para trás, muito risonhos. E a cabeça sai, arrancada.
A mulher de Pierre entra, furiosa: ― «Olhem-me para esta bagunça! Voltou a entornar o vinho! Nem sequer chega a bebê-lo. Há-de entorná-lo sempre no chão. O tipo nem sequer sabe levantar-se...»
E lá vai ela à procura de qualquer coisa para limpar. Agarram-na então pelos cabelos. O corpo cai para a frente. A cabeça fica-lhes na mão. Um cabeça furiosa que baloiça, com cabelos compridos.
Aparece um grande cão a ladrar com toda a força. Dão-lhe um pontapé e cai-lhe a cabeça.
Agora têm três. Três é um bom número. Além do mais, permite escolher. Não são, de facto, cabeças iguais. Nada disso: um homem, uma mulher, um cão.
Voltam para junto daquele que já tem uma cabeça, e encontram-no à espera.
Põem-lhe o monte de cabeças no colo. E ele põe a cabeça do homem à esquerda, ao pé da primeira cabeça, do outro lado a cabeça do cão, e a cabeça da mulher, e os seus cabelos compridos. Depois espera.
E fica a olhar para eles com um olhar fixo, um olhar que não diz sim nem não.
― Oh! Aquelas? Tinham-nas encontrado em casa de um amigo. Estavam lá em casa... Não interessa saber quem as levou para lá. Não havia mais nenhuma. Apanharam as que havia. Da próxima vez a coisa havia de correr-lhes melhor. Mesmo assim já era sorte. Cabeças não são o que falta, felizmente. De qualquer coisa já era tarde. Encontrás-las no escuro. O tempo que levam a limpar, sobretudo as que estiverem na lama. Vão tentar, enfim... Seja como for, nós dois não podemos trazer sozinhos uma carroça cheia. Claro que não... Mas vamos... De há bocado para cá talvez tenham caído mais algumas. Ver-se-á...
E afastam-se, seguidos por um olhar que não diz sim nem não, seguidos por um olhar fixo.
― Oh! Eu cá, bem sabes... Não! Olha! Tira-me a cabeça a mim. Aparece-lhe com ela e verás que não a reconhece. Nem sequer olha. Dizes-lhe assim: ― «Toma lá, quando saí tropecei nisto. Ao que parece, é uma cabeça. Trouxe-a para te dar. E por hoje basta, não é verdade...?»
― Mas eu só te tenho a ti, meu velho!
― Vamos, vamos, nada de sentimentalismos. Tira-ma. Vá, puxa, puxa com força, com mais força, então que é isso!
― Não. Bem vês que não sai. É o nosso castigo. Vá, experimenta tu com a minha, puxa, puxa.
Mas as cabeças não saem. Boas cabeças de assassino.
Já não sabem o que fazer e tornam a partir seguidos pelo olhar que espera, um olhar fixo.
Acabam por desaparecer na noite, o que lhes traz grande alívio; a eles, à sua consciência. No dia seguinte partirão ao acaso numa direcção qualquer, enquanto puderem. Vão ver se conseguem viver uma vida decente. É muito difícil. Mas vão tentar. Vão tentar nunca mais pensar em nada disto, viver como dantes, como toda a gente...
A Extracção das Cabeças, in Um Certo Plume, Henri Michaux, tradução de Luís Matos da Costa, Hiena Editora, 1992
3 comentários:
:)
A cabeça entre as mãos.
Uma imagem que sugere peso. Uma camioneta carregada de areia.
O texto escolhido...
Mantendo a ideia (do título do post e do arrancar de cabeças): arranquem-me a cabeça que me está a encomodar.
Até logo.
bom excerto.
deixa-me dizer te uma coisa q nunca disse: adoro o exotismo do link deste blog:)
claro que ja fui tentado a meter o ponto depois do www...:P
Tiago
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