07/01/09

Matei 4 de uma vez, salvo seja

Escreveu Carlos Drummond de Andrade no «Poema das Sete Faces»: Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida. O poeta foi um destro com alma de canhoto, Machado de Assis era esquerdino de nascença. Mas onde os dois se harmonizarão melhor é nestes versos mais à frente: Mundo mundo vasto mundo/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução. Porque o «bruxo da Rua do Cosme Velho», como lhe chamou Drummond noutro poema, de soluções sabia pouco: envolvendo o cepticismo na capa do humor, a ironia machadiana tudo contagia; a intriga, as personagens, a linguagem e a própria arquitectura romanesca.
Disponíveis em dois volumes editados pela Relógio d'Água, Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba juntam-se a Dom Casmurro e Esaú e Jacó, permitindo-nos (re)ler um escritor cuja comicidade estruturante o torna irresistível para quem se interesse pelas coisas (universais) da literatura. Citando o estudioso da sua obra, Abel Barros Baptista: Daí que [o cómico], nos livros de Machado, seja antes do mais uma peripécia de composição: o capítulo que acaba de repente ou nem chega a começar, o capítulo vazio ou sem propósito legível, o (…) que integra a sequência do passo que a interrompe. Brás Cubas dizia de um dos [deles]: «Mas este capítulo não é sério». Acrescente-se: nada aqui é sério. Como já nada era sério em Henry Fielding (Tom Jones) ou em Laurence Sterne (Tristram Shandy), se quisermos entrar numa de reclamar genealogias.
Brás Cubas disserta do Além: Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adoptar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor (…); a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.
Quincas Borba retoma personagem homónima das Memórias… e a sua filosofia, o Humanitismo (resumida na frase: Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas), prosseguida agora por Rubião (finado Quincas no romance póstumo), herdeiro rejeitado por Sofia que acaba louco, na miséria e morto.
Dom Casmurro, o seu texto mais célebre, e que traz dentro a célebre e enigmática Capitu, merecia também mais mas fique-se pelo título: Uma noite destas (…) encontrei no trem (…) um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que Bento Santiago cabeceou e o poeta levou-lhe a mal o gesto: ficou Dom Casmurro. Tudo isto vem logo no início, com o capítulo II a abrir assim: Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. E mais moderno é impossível… Ou talvez não.
Esaú e Jacó é um tratado de complexidade narrativa, pretexto das mais enviesadas hermenêuticas. Psicanálise, política, teoria literária, tudo já foi invocado a propósito deste texto (perdido e achado entre os papéis do Conselheiro Aires) centrado na rivalidade dos gémeos Pedro e Paulo e narrado não se sabe bem por quem.
E aproveite-se o Aires para passarmos a Eça que também teve o seu Acácio, além de um desaguisado com o mestre brasileiro precisamente por causa d' O Primo Basílio. Mas nada disso terá assim tanta importância. Parafraseando o bruxo do Cosme Velho: «Estão mortos: podemos elogiá-los à vontade».
[Fotografia de woman reading on top of ladder roubada daqui]

5 comentários:

Anónimo disse...

O Memorial de Aires tá editado naquela colecção da RTP (que foi um dos melhores programas da rtp...) e é um belo livro. Ainda me lembro de uma frase, mais ou menos assim: "troco a filosofia toda por um prato de sua sopa".

Maria disse...

Ainda só li o Memórias Póstumas e o Quincas Borba (embora o Memorial de Aires aqui esteja numa das prateleiras, nessa bela coleccção da RTP) e, de facto, a modernidade de Machado de Assis é impressionante (corro o risco de ser expatriada, mas considero-o o maior autor do século XIX).

'Ao vencedor, as batatas!'

Anónimo disse...

Se ainda estou bem recordada das minhas aulas de Literatura Brasileira (com o estudioso que a Ana citou, o prof. Abel Barros Baptista), o conto do Eça que o Oliveira está a rodar neste momento no Chiado ("Singularidades de uma Rapariga Loura") é inspirado num conto do Machado de Assis que fala também sobre uma mulher estranha; tenho de rever isto.

Anónimo disse...

Ao vencido, ódio ou compaixão;

ou melhor, odio e compaizao, uma exerce se em privado e outra em publico

A. Moura Pinto disse...

Já agora, toda a obra do M de Assis está disponível aqui

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp;jsessionid=56390C5A8700C08E923ACC71692601BC

depois de caída no domínio público. E temos lá as querelas com Eça.