03/10/08

Dinis Machado (1930-2008): «Morrer é só não ser visto»

«[...]"Então a tua tia chalou?, perguntou um dia o Zuca", disse Austin "como é que ela faz?, tem ataques?, é maluca de ter de ficar atada?, de ter ataques com espuma na boca ou é só maluca de não ligar a nada?, o rapaz disse que era maluca de falar em comboios e em serradura, que era um bocado triste e não fazia mal a ninguém, fazia-lhe impressão porque ela já não o conhecia, estava paradinha no banco de lona, então o Bertinho Ranhoso dizia que os malucos com uma grande calma às vezes eram os piores, estão com uma grande calma e só pensam em meter facas no bucho das pessoas, o Peida Gadocha dizia que também tinha uma tia maluca, mas era só maluca de comprar vestidos, tinha mais de quatrocentos vestidos, comprava os vestidos e passava-lhes a mão, era maluca de passar a mão pelos vestidos, o Zuca dizia que quatrocentos vestidos era uma peta das antigas, isso ninguém tinha, o Peida Gadocha dizia que se não eram quatrocentos eram duzentos, isso não interessava, ela era chalada de mexer nos vestidos e de estar sempre a dizer está bem mas tenho de mudar de vestido, dizia os meus vestidinhos, os meus vestidinhos, depois ficava nervosa e ia comprar mais vestidos, o Mané Borbulhas dizia que tinha um tio e uma tia que ficaram malucos ao mesmo tempo, foi por causa de uma roca, ele tinha uma roca em cima da mesinha-de-cabeceira, ela começou a embirrar com a roca, que ele gostava mais da roca do que dela, ele disse que nem ligava à roca, estava ali porque tinha um feitio giro, tinha-a comprado na Feira da Ladra, mas para a chatear começou a cantar uma música que é a Traviata com versos a falar da roca, que lindo som que esta roca tem, tatati, tatatitati, ela para se vingar escondeu-lhe as calças e ele não podia sair de casa, cantava a Traviata à procura das calças, e ao fim de três dias chateou-se e saiu para a rua em cuecas e a tocar a roca, foi logo engavetado pelo polícia, a família toda foi à esquadra, a minha mãe levou-lhe umas calças do meu pai, mas ele não quis, que ficava em cuecas e a tocar a roca enquanto não lhe dessem as calças dele, a minha tia disse que lhe dava as calças se ele deitasse a roca fora, depois fizeram as pazes, o meu tio deu a roca à minha mãe, que ma deu a mim, era eu puto, eles depois deixaram de ficar malucos, a roca é que os chalava, o Zuca então dizia que também tinha um tio maluco, andava sempre de boca aberta e a pensar em nada, era despedido dos empregos porque o apanhavam de boca aberta e a pensar em nada, andava aí pelas ruas com livros debaixo do braço, vai lá a casa só no Natal, dizia ele, no último Natal ficou de boca aberta no meio do jantar, fez-me uma festa na cabeça e foi-se embora, deixou a perna de peru no prato, às vezes encontro-o e faz-me uma festa na cabeça, depois ficamos a olhar um para o outro, pergunta-me se eu já ando na escola, eu começo a falar e ele fica de repente de boca aberta, faz-me outra festa na cabeça e vai-se embora, ninguém consegue falar com ele, desliga quando lhe dá o aparte de ficar de boca aberta e de pensar em nada, o que ele gosta é de dar milho aos pombos nas praças, um dia o meu pai deu-lhe uma grande descompostura, disse-lhe o piorzinho, e depois no fim perguntou-lhe e agora o que é que vais fazer?, vou dar milho aos pombos, disse ele, fez-me uma festa na cabeça e foi-se embora de boca aberta, parece que os pombos é que o conhecem bem, poisam-lhe nos ombros e na cabeça, comem o milho da mão dele, um emprego de dar milho aos pombos é que era bom para ele, às vezes ele anda aqui no Largo do Navegante a dar milho aos pombos muito satisfeito da vida, anda de largo em largo, senta-se nos degraus das estátuas e põe-se a ler uns livros que ninguém percebe nada de um gajo chamado Pessoa, não é o António Pessoa, porque esse é o das balanças, é outro, se calhar é um livro sobre pombos, não sei, uma vez foi para a tropa e desertou, foram dar com ele numa praça a dar milho aos pombos, perguntaram-lhe porque é que ele tinha desertado e ele disse que marchar lhe fazia bolhas nos pés, acabou por ser preso e apanhou uma data de castigos, mas punha-se de boca aberta e não ligava a nada, depois mandaram-no para um manicómio e foi uma grande confusão, o médico perguntou ao meu pai se o meu tio tinha uma coisa que era intermitências não sei quê, o meu pai perguntou ao meu tio se ele tinha essas intermitências, o meu tio perguntou de que cor?, depois viram-lhe a língua e os olhos, ele nos intervalos perguntava ao enfermeiro não se importa de me dar o meu Pessanha?, que é um livro de outro gajo, o médico fazia-lhe perguntas para malucos, mas ele não ligava, só ligava ao Pessoa e ao Pessanha, queria era ficar de boca aberta a pensar em nada, devia sentir a falta dos pombos, acabaram por mandá-lo embora porque não havia lugares, os lugares eram precisos para os malucos assassinos e para os que espumam da boca, vai lá a casa no Natal, agora mesmo está ele, até aposto, a dar milho aos pombos num largo qualquer, a ler livros e de boca aberta, há malucos à brava mas não são perigosos, o meu pai diz que o Bigodes Piaçaba é maluco de ajudar os pobres, de querer pias limpas e banheiras e de acabar com os percevejos, de fazer umas grandes fitas com os senhorios e de querer endireitar o mundo, é um maluco que pensa nas coisas, em escolas e em hospitais, há malucos com outros apartes, de andarem a falar sozinhos ou de arriarem sempre do melhor, como o Joca Farpelas, ou de fazerem discursos que não interessam nada, e os malucos de contar o dinheiro, contam o dinheiro quinhentas vezes, depois falta-lhes um tostão e voltam a contar, se a porra do tostão não aparece até ficam doentes de cama, e os malucos de tocar pífaro só gostam de estar a tocar pífaro e o resto não interessa, todos os gajos têm um tio maluco, às vezes há gajos que têm uma data de malucos na família, o Padeirinha diz que a avó dele é maluca de dizer que lhe roubam coisas da caixa da costura, os dedais, as agulhas e os botões, um dia foi cá uma fita por causa de um botão de madrepérola, o avô do Padeirinha foi aos arames e disse que queria que o botão se fodesse, e bateu com a porta como de costume, o Padeirinha anda sempre a arranjar a fechadura, pede à avó que acabe com a mania que lhe roubam a caixa da costura e ao avô para não bater com a porta, mas eles não ligam, os malucos não ligam, é esse o aparte deles, até a minha mãe um dia acordou maluca, subiu-lhe à cabeça uma coisa que é a ureia, começou a dizer ao meu pai que andava um cágado nas dunas, o meu pai à rasca dizia um cágado nas dunas?, um cágado nas dunas?, levou-a para o hospital das pernas partidas, conhecia lá um enfermeiro, o meu pai começou a dizer às pessoas todas que a minha mãe dizia que andava um cágado nas dunas, uma enfermeira disse que ali era o hospital das pernas partidas, das doenças de pus e coisas assim, dizia que as doenças de cágados nas dunas era no manicómio, uma velhinha caquéctica e iglantónica perguntou qual cágado?, quais dunas?, um gajo que estava ao pé a gozar o prato disse que devia ser um cágado de patins nas dunas do Pólo Norte, o meu pai disse para o gajo ir gozar com os cornos do tio dele, o gajo a gozar perguntou quais cornos?, qual tio?, foi uma grande zaragata, o polícia que lá estava tirou o chinfalho e disse daqui a bocado dou-lhes o cágado, depois ficaram todos na bicha, eram mais de mil, a minha mãe começou a falar com a velhinha sobre o cágado, depois o enfermeiro conhecido do meu pai foi falar com o médico que o atendeu, ele disse que o cágado nas dunas era da ureia, nessa altura a minha mãe já não falava no cágado, dizia ao meu pai para ele não comer as prateleiras e as cortinas, que as cortinas e as prateleiras faziam falta, para ele comer a sopa de massa com grão que estava na panela, era só pôr ao lume e aquecê-la, o médico disse ao meu pai que tivesse calma, ele sabia que o meu pai não comia as prateleiras e as cortinas, depois deram uma injecção à minha mãe, ela ficou melhor, pelo menos não dizia peva, vieram de táxi e a minha mãe no meio do caminho perguntou ao chofer se ele tinha cortado as unhas dos pés e tomado o remédio para a tosse, o chofer perguntou ao meu pai se a minha mãe estava a gozar com ele, o meu pai disse que era da ureia, o chofer disse que até cortava as unhas dos pés todas as semanas, desejou as melhoras da minha mãe, chegaram a casa e a minha mãe começou a dizer que o meu pai a tinha enganado, que a tinha trazido para ali para lhe tirar as cuequinhas cor-de-rosa com pintinhas verdes, mas que ele se enganava, que ela não trazia as cuequinhas cor-de-rosa com pintinhas verdes, trazia umas cuecas pretas de renda, o meu pai telefonou para o enfermeiro e só dizia que puta de vida, depois deram outra injecção à minha mãe, ela ficou de cama dois dias e acordou boa, não se lembrava de nada, o meu pai é que até fica amarelo quando se fala naquilo".» [...]
Dinis Machado, O que diz Molero, 1977

7 comentários:

Anónimo disse...

Tens sorte é que já não seja condenado o portador de más notícias, porque esta é uma notícia péssima, para quem gostava do Dinis e da literatura que ele era (e é, O que diz Molero é um concentrado da sua mestria e não temos livros comparáveis em Portugal), e da personagem que ele próprio era.

Ana Cristina Leonardo disse...

Detesto ser o portador de más notícias, sobretudo quando se referem a um homem e a um livro destes. Estou triste.

Anónimo disse...

Há já mais de um ano passou uma longa entrevista na rádio com ele - Nino Rota a abrir - e no fim uma das crónicas que ele fazia para a rádio - em fins de 70 - fabulosa, apresentada pelo Fernando Assis Pacheco.

Dele só me falta ler 2 dos 3 policiais, não sei já foram editados pela assírio.

Anónimo disse...

Ele era Rachmaninófico.

António

Unknown disse...

Boa noite.
O seu blogue está noemado para o Prémio Cegueira Lusa referente ao mês de Outubro de 2008.

Cumprimentos,

José Carreira (www.cegueiralusa.com)

Ana Cristina Leonardo disse...

António, o Peito Rente diria o mesmo, e eu com ele.
Carreira, não sei de que prémio se trata, mas até hoje se ganhei alguma coisinha foi ao poker

Anónimo disse...

Deixa lá o póker, hoje «ganhaste» um abraço pelo teu «Estou triste.