24/05/08

Lídia Jorge: os contos dispensáveis

O texto «Teses sobre o conto», do escritor argentino Ricardo Piglia, inicia-se com uma anotação de Tchekov: «Um homem, em Monte Carlo, vai ao casino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se». Nenhum dos episódios registados pelo mestre russo tem lugar em Praça de Londres que é, além da designação do último livro de Lídia Jorge, o título da primeira das suas cinco narrativas. E as outras são: «Rue de Rhône», «Branca de Neve», «Viagem para Dois», «Perfume», esta última dedicada a Yilmaz Güney.
Estruturalmente denunciam uma construção linear, com a (diminuta) tensão alicerçada, sobretudo, em aspectos psicológicos ou de intriga, a qual, por vezes, se quer de desfecho surpreendente; casos de «Perfume» ou de «Viagem para Dois». «Praça de Londres» opta pelo anticlímax final; «Rue de Rhône» denuncia pendor feminista; «Branca de Neve» tenta o registo mágico. Ou seja, é difícil encontrar-lhes unidade na arte de contar, casadas apenas pelas preocupações sociais ou de género que as atravessam.
Parafraseando a anotação de Tchekov. «Praça de Londres»: uma mulher a contas com a Justiça caminha pela rua, cruza-se com um homem velho com uma criança ao colo, persegue-os até ao prédio onde moram, foge antes de conseguir entrar; «Rue de Rhône»: numa loja, duas mulheres cobiçam uma mala de pele de crocodilo, percebem mal os zeros do preço, pagam-na só depois verificando o erro, levam o exemplar pré-histórico para casa; «Branca de Neve»: no escritório, já tarde, na véspera de Natal, a gerente bancária Maria da Graça faz um telefonema de trabalho para o cliente Silva Dias que o considera inadequado à época, atravessa a cidade deserta, é perseguida por um bando de crianças que se abriga do frio «à sombra» do seu casacão de caxemira, é assaltada, acaba em casa de amigos reinventando o sucedido de modo a salvar o mais pequeno dos ladrões da «agulha da perversidade»; «Viagem para Dois»: dois passageiros num comboio, uma escritora de romances de cordel e um escriba de «relatórios criminais», ele conta-lhe o episódio da vizinha cujo anel de noivado fora engolido pelo gato, confessa-lhe o epílogo do relato que o implica, aconselha-a a omiti-lo quando passar a história ao papel por resultar «demasiado kitsch»; «Perfume»: um menino é abandonado pela mãe, vive com o pai músico (sempre em tournée) e a babá, esta começa a ficar obcecada pelo perfume das roupas do homem adivinhando-lhe orgias, o menino sofre em silêncio, o pai decide passar a levá-lo consigo para onde quer que vá, o menino descobre uma noite que a «orgia» que dorme na suite que partilha com o pai é a sua própria mãe, com a qual aquele se encontrava sempre que podia.
Sirvo-me dos resumos para assinalar que falta a Praça de Londres essa capacidade de contar uma história remetendo para outra (tese fundamental de Piglia – a de que um conto conta sempre duas histórias), deixando pouco espaço para o sonho e para a imaginação do leitor, dissipada esta pelo moralismo que cada um dos títulos evidencia.
Mesmo naquele que dá nome à obra (na nossa opinião, o melhor), o discurso imaginado da porteira, no seu registo corriqueiro, corta-lhe o voo, empobrece-o, rebaixando-o para uma realidade telenovelesca que aniquila o efeito de estranheza.
E, entre outras, residirá, nessa incapacidade para levar a «estranheza» às últimas consequências, a razão maior do falhanço deste livro. Noutros casos, como em «Viagem para Dois», a ironia vê-se desfeita pela falta de contenção, esquecido que, num género que obriga à síntese, o mais importante deve ficar por dizer. O mesmo se aplica a «Branca de Neve», onde o explícito pendor alegórico destrói uma ideia que resultaria perfeita em Poe: as crianças ladras que se multiplicam misteriosamente «à sombra». A babá de «Perfume» merecia ter sido eleita personagem principal (e podemos imaginá-la na perfeição sob a batuta de Flaubert), perdendo-se a história em pormenores realistas que não só nada acrescentam como reforçam a fraqueza da voz do narrador, um homem que recorda a sua infância.
Em resumo: Praça de Londres desilude, apesar da boa abertura de «Perfume» ― «Diz uma velha canção que no fundo de uma garrafa se encontra a vida de um homem, e por certo que assim acontece desde que se inventou a fermentação do malte» ― poluída de frases chãs, cuja sonoridade pouco terão de literário (assumida a incapacidade da crítica para definir «literário»), ideias curtas e excesso de mensagem.
Imagem: ©Sunna Sigurdardottir.
Praça de Londres, Lídia Jorge, Dom Quixote, 2008

3 comentários:

ND disse...

nunca li nada da Lídia Jorge. Mas já abri livros dela para ver se me apatecia. Nunca me apeteceu.

Ana Cristina Leonardo disse...

pois...

Rui leprechaun disse...

Ena! que crítica brava... mas justa e nada parva! :)

Pois eu não me lembro mesmo de ter lido nada da Lídia Jorge, nem sequer ter aberto livro algum.

Creio que também escreveu agora um conto infantil, não foi?

Bem, podia começar por aí...

Rui leprechaun

(...Joaninha: qu'est-ce que tu dis? :))