18/05/08

Da arte do romance

Tradutor premiado, poeta encartado, cidadão interventivo, opositor firme do novo Acordo Ortográfico, romancista às vezes. Vasco Graça Moura acaba de publicar Alfreda ou a Quimera, romance cuja origem, como o próprio explica em «nota final», se encontra num conto de Verão encomendado ao autor pelo Expresso.
Se a trama assenta numa obsessão – a que a Alfreda desperta em João de Melo Saraiva, protagonista e apaixonado por livros antigos, narrador e sujeito da história que com Alfreda se cruza precisamente por causa de um lote de obras à venda – , o registo chega-nos desprovido de qualquer catastrofismo, mais perto do cinismo do que da tragédia, e isto embora João de Melo confesse, quase no final, com certeza não a despropósito, a sua paixão por esse melodrama maior dirigido por Visconti, Senso, que é também ele uma história de obsessão, mas essa de qualidade mortífera. O lirismo, aqui, quase só assenta à outra personagem que pontua o texto, a cidade do Porto (e as paisagens nortenhas), invocada tanto na sua geografia como nos tipos humanos que define, um dos quais, Pips, aliás, William Brompton-St. James, por acaso (?) é inglês.
«Há um Porto expressionsita e fragmentário, às vezes existencialmente desesperado, vivido por dentro, interiorizado por quem sente a sua pertença à cidade, liricamente escuro e visceralmente obscuro no seu dramatismo, ramificado numa dimensão do tempo que se recupera por manchas e blocos a interpenetrarem-se na memória, por vezes em violentos diálogos entre o granito, o rio, as brumas, a luz do sol, a chuva», escreve-se na pág. 69, sem distanciamento, poderíamos arriscar. Porque, no resto, adivinha-se a lonjura que vem dos clássicos, intercalada com o gozo pícaro que se destaca quando se opta pela paródia: «(...) a Bettina chegou mais cedo e disse que tinha muita pena, mas não podia deixar de ir assistir a um debate sobre o terrorismo. (...) A mim, o terrorismo não interessava, a não ser na medida em que contra ele fosse criada uma segurança eficaz para toda a gente. E, além disso, chovia. E. além disso, eu não estava vestido para ir a lado nenhum, nem estava para mudar de roupa. (...) Mas ela mostrou-me que vinha de gabardina de nylon, jeans e sapatos de ténis, garantiu que a sessão era absolutamente informal (...) que ia ser muito interessante (...) que a gente que lá ia estar era muito simpática, inteligente e informada, enfim, lá me arrastou para a sala-bar de uma cooperativa qualquer na cave esconsa de um prédio esconso de uma zona ainda mais esconsa ali para os lados da Campanhã, um espaço com um pé-direito muito baixo, cheio de fumo a pairar como nevoeiro sobre as mesas, e com as portas e as janelas fechadas por causa do frio e das correntes de ar», pág. 85.
Se da combinação destas (boas) influências seria legítimo esperar um bom romance, Vasco Graça Moura perde aqui, porém, uma oportunidade para descolar do realismo e descolando-se, fazer voar o leitor, dando-lhe a conhecer mundos menos óbvios ou imediatamente identificáveis. Apesar da subtil mordacidade do anticlímax do final, imagine-se esta femme fatale, mulher que viveu várias vezes, nas mãos de Henry de Montherland. Imaginem-se estes inspectores de polícia nas mãos de Cardoso Pires. Imagine-se esta burguesia cultivada nas mãos de Eça.
Há neste último romance de Vasco Graça Moura um efeito de reconhecimento que o empobrece, que não ultrapassa a fronteira que G. K. Chesterton sabia distinguir a ficção da literatura: a primeira, uma necessidade, a segunda, um luxo (com História). Parafraseando Milan Kundera, em A Arte do Romance, depois de Cervantes se interrogar sobre a aventura, Samuel Richardson «desnudar a vida secreta dos sentimentos», Balzac descobrir «o enraizamento do homem na História», Flaubert explorar o território desconhecido do quotidiano, Tolstoi se debruçar sobre o irracional, depois de Proust ter sondado o passado e Joyce o presente, ou Thomas Mann os mitos, só restará ao romance reinventar-se ou morrer. Com Alfreda ou a Quimera, infelizmente, Vasco Graça Moura não o ressuscita.
Alfreda ou a Quimera
Vasco Graça Moura, 2008, Bertrand

3 comentários:

Anónimo disse...

Talvez devesse referir (perdoe a observação) que este seu texto foi, originalmente, publicado na Actual, do Expresso... Isto, se bem me lembro (e creio que não foi há muito tempo)...
Borges disse um dia que os romances, em geral, pecavam por excesso de população. Parece-me que o problema, hoje, está mais no excesso de presunção...

Ana Cristina Leonardo disse...

Caro Ademar, não é a primeira vez que coloco na Pastelaria críticas originalmente escritas para o Expresso. Não costumo assinalar o facto, até porque os textos raramente são exactamente iguais. De qualquer modo, aqui são à borla

Anónimo disse...

" A verdadeira vida, é a literatura" M. Proust

ACL,caríssima escritora: Se bem que eu conheça mal a obra romanesca de VG Moura,aprecio mais a sua actividade de tradutor e desconfio, sublinho, muito da sua lendária postura(s) política ; creio, por aquilo que amigos chegados me contam, que VG Moura tentou o romance " clássico " , tipo Roth ou Sollers, com o módico perverso e mísero da falta de referências filosóficas ou estilísticas. E depois existe também o snobismo retardado a mistificar um oportunismo político disfarçado de alucinações falocráticas fatais...

Permita-me adiantar esta reflexão muito puxada de Ph. Sollers: " Não existe pensamento real sobre o Outro.Tudo é jogo. O amor e a morte, o sexo e a morte, isso não pode, nem quer dizer... o que quer que seja"; in " Éloge de l´Infini ", pág.836. NRF-Gallimard.

Thanks pela (re)publicação. Salut! FAR