22/02/08

Cansados de Peixotos e de «trapezistas do marketing» vamos a coisas sérias

(...) Estes dentes eram novos e tinham sido feitos para a parte inferior do lado direito da sua boca. Devido ao desfiguramento facial, o dentista andava a ter muitas dificuldades em ajustá-los como devia ser; dois dias antes, apenas, quando andava a passear na rua comigo, o meu pai arrancara-os da boca — «Malditas coisas! Demasiados dentes!» —, mas depois, quando os tinha na mão, não soube o que fazer com eles. Nessa altura íamos a atravessar a North Broad Street e o semáforo estava quase a ficar vermelho para nós. «Dê-mos», disse-lhe, e tirei-lhe a placa e meti-a na algibeira. Para meu próprio espanto, foi extraordinariamente agradável tê-la na mão. Longe de me sentir repugnado ou enojado, enquanto continuava a conduzi-lo, segurando-lhe um braço, para o passeio, divertiu-me a naturalidade daquilo, como se nos tivéssemos tornado oficialmente parceiros de um duo cómico; como se eu tivesse assumido o papel do homem recto em relação a um palhaço cujos dentes postiços mal ajustados quase faziam a casa vir abaixo com gargalhadas (...)».
(...)
«Depois, numa noite, decorridas cerca de seis semanas, por volta das quatro da manhã, ele apareceu numa mortalha branca com capuz para me repreender. Disse: «Devia ter-me sido vestido um fato. Foi errado o que fizeste.» Acordei aos gritos. Tudo quanto espreitava da mortalha era o desagrado do seu rosto morto. E as suas únicas palavras foram uma censura: eu vestira-lhe a roupa errada para a eternidade.
De manhã compreendi que ele estivera a referir-se a este livro que, de conformidade com o indecoro da minha profissão, estive a escrever durante todo o tempo em que ele esteve doente e a morrer. O sonho dizia-me que, se não nos meus livros ou na minha vida, pelo menos nos meus sonhos eu viveria perenemente como o seu filho pequeno, com a consciência de um filho pequeno, assim como ele permaneceria vivo neles não apenas como meu pai, mas como o pai a julgar seja o que for que eu faça.
Não devemos esquecer nada.»
Património, Philip Roth, Dom Quixote, 2008

14 comentários:

João Ventura disse...

Regressemos, então, à confiança nos clássicos e separemos a sua escrita interpeladora do mundo dos escritos menores que andam por aí, escritos por escreventes fetichistas dos bons lugares e postos a circular pelos tais «trapezistas do marketing». E a quem melhor regressar, do que a Philip Roth, que há algum tempo, numa entrevista, disse que «a literatura está a morrer, não por falta de bons escritores, mas porque os leitores estão mortos».

ND disse...

uma das minhas frustrações é não conseguir dizer - bem escrito - sobre aquilo de que gosto muito. Fico toda encolhida.

Anónimo disse...

"- recebeste a carta de amor que te enviei?,
- recebi e rasguei-a. estava tão bem escrita que achei que era a melhor maneira de te responder"

num outro livro do mesmo autor *

Ana Cristina Leonardo disse...

João, talvez alguns leitores entretanto ressuscitem e outros ainda não tenham morrido
N, encolhida parece-me um excelente ponto de partida

João Ventura disse...

Que tal, então, Ana, perseguir nas figuras de leitores mortos o rasto dos leitores por vir. Por exemplo, na leitora Anna Karennina lendo à luz de um candeeiro um romance dentro de um romance. Ainda, o regresso aos clássicos. Ricardo Piglia, «o clássico rebelde», acende-nos essa luz em «O último leitor» [Teorema]. Imperdível.

menina alice disse...

O que esse homem me ensinou acerca de desconstranger e de conviver com fantasmas. Descuido-me e saoi de casa e cou já comprar esse.

Ricardo disse...

Roth não é só bom. É verdadeiro.

Paulo disse...

A olhar para um pedaço da minha estante norte-americana, ponho-me a imaginar como seria uma noite de scotch e charutos com Roth, Dos Passos, Bellow, Faulkner, DeLillo e Maccarthy, um em cada poltrona. Se calhar a bela da desilusão para noite de scotch e charutos, mas acho que dá para perceber a ideia...

Paulo disse...

O Salinger, em querendo, também podia aparecer. Mas o Roth teria de ser. Aliás, seria em casa dele. Eu estaria lá, claro; o moço dos acepipes.

Ana Cristina Leonardo disse...

paulo, junto-me à tertúlia: sou a moça dos acepipes

margarete disse...

eu serviria o café, como sempre.

margarete disse...

medie de ideias: serviria o scotch, justificaria a minha presença constante na sala, e podia dar uns tragos, muito café faz mal, dá nervos

margarete disse...

medie = mudei

menina alice disse...

Eu ficava com o comando, a fazer zapping. Esse pessoal só pode ser todo de poucas palavras ditas.