«Irmãos humanos, deixem-me contar-vos como foi que se passou», assim começa As Benevolentes (Dom Quixote), o outro nome das temíveis Fúrias. Romance de quase 900 páginas, escrito em francês por Jonathan Littell, um norte-americano com menos de 40 anos, arrebatou em 2006 os prémios Goncourt e da Academia Francesa, tornando-se num inesperado sucesso de vendas.
Verdadeiro compêndio das atrocidades nazis, tem como narrador Max Aue, homossexual incestuoso e próspero homem de negócios, em tempos um dedicado SS, o qual nos confessa, logo a abrir, não sofrer de arrependimento, embora sofra pontualmente de enxaquecas, insónias e distúrbios intestinais. Na verdade, o que ele gostaria era de se ter dedicado às artes.
Hannah Arendt previra que o problema do Mal seria o grande tema do pós-guerra. Ao invés, prontamente se varreu a ética para debaixo do tapete, e até Se Isto É Um Homem, de Primo Levi — considerado, à falta de termo mais adequado, «o» clássico da literatura sobre o Holocausto — passou despercebido durante mais de uma década, só ganhando visibilidade já nos anos 60.
Entretanto, mais livros surgiram a público, e seria injusto não registar, entre outros, nomes como Jean Améry, Jorge Semprún, Robert Antelme, David Rousset ou Imre Kertész. Todos estes autores partilharam a vivência concentracionária e todos eles decidiram (e conseguiram) dá-la a conhecer. Fizeram-no recorrendo ao material da memória, sem que por isso se vislumbre nas suas obras qualquer resquício de mimetismo aristotélico, qualquer ilusão na correspondência gemelar entre a palavra e o real.
Hannah Arendt previra que o problema do Mal seria o grande tema do pós-guerra. Ao invés, prontamente se varreu a ética para debaixo do tapete, e até Se Isto É Um Homem, de Primo Levi — considerado, à falta de termo mais adequado, «o» clássico da literatura sobre o Holocausto — passou despercebido durante mais de uma década, só ganhando visibilidade já nos anos 60.
Entretanto, mais livros surgiram a público, e seria injusto não registar, entre outros, nomes como Jean Améry, Jorge Semprún, Robert Antelme, David Rousset ou Imre Kertész. Todos estes autores partilharam a vivência concentracionária e todos eles decidiram (e conseguiram) dá-la a conhecer. Fizeram-no recorrendo ao material da memória, sem que por isso se vislumbre nas suas obras qualquer resquício de mimetismo aristotélico, qualquer ilusão na correspondência gemelar entre a palavra e o real.
Ainda assim, a sua experiência testemunhal, enquanto protagonistas da «shoah» (palavra hebraica para «catástrofe»), tê-los-á impedido de ultrapassar a fronteira em que a linguagem tende a submergir no abismo; caberia à imaginação de outros transpor o fosso sem se perder no Inferno. E Inferno aqui não é uma metáfora inócua: muitos dos autores citados (e não citados), incluindo Primo Levi, acabaram por suicidar-se.
Porém, como ficcionar o Mal que marcou a ferros o século XX, sobretudo depois de tantos terem levado a sério a declaração bombástica de Adorno que, do seu exílio na América e invocando Auschwitz, condenava a poesia ao silêncio eterno? Nota de rodapé: a poesia, como se sabe, sobreviveu, embora o poeta judeu Paul Celan, também ele um sobrevivente, se tenha atirado ao Sena (Adorno morreu na cama).
Certas derivações metafísicas foram-se, entretanto, colando ao tema do Holocausto. Adjectivos algo pomposos e de qualidade negativa (indizível, incompreensível, indefinível...) cobriram-no de uma mística brumosa que, por lhe negar explicação, do nosso ponto de vista acaba a matar as vítimas duas vezes.
Certas derivações metafísicas foram-se, entretanto, colando ao tema do Holocausto. Adjectivos algo pomposos e de qualidade negativa (indizível, incompreensível, indefinível...) cobriram-no de uma mística brumosa que, por lhe negar explicação, do nosso ponto de vista acaba a matar as vítimas duas vezes.
O israelita David Grossman foi um dos que tentou contrariar a corrente, ficcionando em Ver: Amor (Campo das Letras) a experiência de Wasserman, um velho sobrevivente judeu. Não o fez, contudo, sem suportar críticas pela «blasfémia» e também sem impregnar o romance de uma atmosfera fantástica e alegórica, como que confirmando os versos de T.S. Elliot: «Vai, vai disse a ave: o género humano/ não pode suportar muita realidade.»
Curiosamente, tem sido mais fácil aos escritores vestirem a pele dos carrascos. O recentemente falecido Norman Mailer, por exemplo, cujo último livro O Fantasma de Hitler (Dom Quixote) acaba também de ser publicado, atirou-se directamente à jugular da besta e reinventou um jovem Hitler tocado pelo Demónio. Convencido que o ditador ultrapassava a compreensão humana, Mailer adiantou que, para si, a única explicação estava na existência do Mal... Mas agora que até a Igreja Católica veio dizer que o Diabo não era para se levar à letra, a hipótese do Mal absoluto parece perder terreno face à da sua banalidade.
As Benevolentes aposta na segunda hipótese. Max Aue é claríssimo: «Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres, os vossos filhos, mas em que ninguém aparece também para vos dizer que matem as mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu.»
Curiosamente, tem sido mais fácil aos escritores vestirem a pele dos carrascos. O recentemente falecido Norman Mailer, por exemplo, cujo último livro O Fantasma de Hitler (Dom Quixote) acaba também de ser publicado, atirou-se directamente à jugular da besta e reinventou um jovem Hitler tocado pelo Demónio. Convencido que o ditador ultrapassava a compreensão humana, Mailer adiantou que, para si, a única explicação estava na existência do Mal... Mas agora que até a Igreja Católica veio dizer que o Diabo não era para se levar à letra, a hipótese do Mal absoluto parece perder terreno face à da sua banalidade.
As Benevolentes aposta na segunda hipótese. Max Aue é claríssimo: «Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres, os vossos filhos, mas em que ninguém aparece também para vos dizer que matem as mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu.»
Todo o livro — com o seu longo cortejo de horrores, da frente russa aos campos de extermínio, acabando na queda de Berlim — se constrói a partir dessa premissa inquietante: não há humanos inocentes. Os que discutem Kant, apreciam Vermeer ou falecem com Monteverdi são os mesmos que assassinam sem pestanejar milhões de seres: como diria Steiner, «as humanidades não humanizam».
Não há ali ninguém decente, resume Vargas Llosa. Será essa a prova de que somos (ou seríamos) todos culpados? David Rousset, que sentiu na pele os efeitos da barbárie, escreveu que «os homens normais não sabem que tudo é possível», o que o filósofo Lévinas traduziu assim: «A questão metafísica primordial já não é a de Leibniz, de saber porque existe algo em vez de nada, mas porque existe mal em vez de bem.»
Seja o que for que se pense deste romance, é também para isso que ele nos obriga a olhar.
5 comentários:
Li o livro em francês, quando saiu, e nunca mais esqueci - não só o fundo como muitas descrições detalhadas.É bom que tudo isto fique na memória dos europeus.
É pena que ainda ninguém tenha arriscado traduzir para português The Destruction of the European Jews, do Raul Hilberg. Acho que nem os brasileiros o fizeram
Grande lição, mnina Ana- Danke!
Mas!
nunca esqueça a componente propaganda que está sempre (?)presente e muito bem suportada, no contexto das abordagens daquele tema feito inesgotável.
-pirata-vermelho, a propaganda só me preocupa na medida em que enxovalha as vítimas. A mim o que me interessa é isto, escrito por alguém que, e citando uma expressão idiota de Jorge Sampaio, era apenas "tecnicamente judeu" (a mãe de Améry era católica e o jovem foi educado no cristianismo):
«Recordar. He aquí la palabra clave, y nuestras reflexiones retornan espontáneamente a su objeto principal: a la pérdida de patria que sufre el desterrado del Tercer Reich. Ha envejecido, y en un lapso de tiempo que ahora ya se cuenta por décadas, se ha visto obligado a aprender que la herida infligida no es de las que cicatrizan con el paso del tiempo, sino que padece una insidiosa enfermedad que se agrava con los años».
A pátria é aqui sinónimo de identidade existencial e Améry suicidou-se, naturalmente.
Li o livro quando saiu em Portugal e o teu post é uma das melhores crítica que li sobre ele.
Enviar um comentário