31/12/07

Literatura para Fumadores mas, como não Sou Fundamentalista, os não Fumadores também Podem Ler

A propósito da entrada em vigor amanhã da lei anti-tabaco, repesquei um texto sobre um livro que anda por aí (foi publicado em 2004 pela Teorema) e que fala das relações entre a cultura e o acto de fumar. Chama-se apropriadamente A Matéria de Que São Feitos os Sonhos e merece ser lido. O autor, quando o conheci, fumava SG Ventil.
A Matéria de Que São Feitos os Sonhos não é um livro a favor ou contra o fumo. Pretende apenas, a pretexto desse prazer etéreo, expor «uma teia sem fim de narrativas que evidencia como as grelhas de leitura mudam com a mudança do mundo. Na verdade, no início dos anos 60 (...) a representação que se fazia dos ‘grandes homens’ estava indissoluvelmente ligada a um cigarro (Bogart), a um charuto (Churchill) ou a um cachimbo (Sherlock Holmes)».
Arriscando-me a ser acusada de ignorante a respeito dos malefícios do tabaco, recordo que Churchill morreu aos 91 anos, Arthur Conan Doyle aos 71 e que, dos três, apenas Bogart desapareceu precocemente aos 57. Mas, como decerto subscreveria Hanif Kureishi, «antes ignorante que fascista».
«(...) porque a morte, como processo fortemente não-linear, tem aversão à ‘separabilidade’ dos factores que a provocam, talvez seja de aceitar alegremente o velho aforismo ‘It’s better to die from something than from nothing’», escreve-se na pág. 238 em resposta ao facto de fumar se ter tornado «the leading cause of statistics». Recordar que «não é possível dar conta da combinatória de riscos a que cada ‘morto’ foi sujeito» talvez não seja despiciendo quando, entre outras, mortes tão provectas como as de Bette Davis, Cantinflas ou John Huston (todos aos 81 anos), Sinatra e Barbara Stanwyck (82), Freud (83), Groucho Marx (86), ou mesmo David McLean, o cowboy da Marlboro (73), são apontadas pelos militantes antitabagistas como exemplos de desaparecimentos ligados ao tabaco. Apetece lembrar que, atendendo pelo menos à idade, os referidos teriam de morrer de alguma coisa.
Reafirme-se: o objectivo de Henrique Garcia Pereira não é negar os riscos da nicotina; o que ele faz é passar em revista memórias, leituras e cumplicidades, criadas e vividas em ambiente de fumo. Dele, aliás, não seria de esperar um livro politicamente correcto ou — dever-se-ia antes dizer? — politicamente saudável.
Lisboeta, nascido na capital em 1945, formou-se em Engenharia Química e de Minas no Instituto Superior Técnico, onde é professor catedrático. Define-se como babyboomer, urbano e viajante. Adivinha-se, pela leitura dos seus textos (onde as notas de rodapé fazem parte do núcleo duro da escrita), ser também um leitor compulsivo (e um amante incondicional de Enrique Vila-Matas).
Em 2000 publicou Arte Recombinatória (Teorema) [é esse livro que exibe na fotografia acima]; em 2002, Apologia do Hipertexto na Deriva do Texto (Difel), obra a que a APE concedera o Prémio Revelação de 1999. A intrincada teia que estabelece entre vida/ciência/literatura, já presente nos trabalhos anteriores, volta a constituir a trama do presente livro.
À primeira parte, onde Garcia Pereira deriva pelas suas memórias invocando a bolorenta Lisboa da sua juventude, fugas e autores de estimação, seguem-se oito anexos temáticos que relacionam o fumo com a clorofila; o amor; a repressão; o jornal; o risco; a lentidão; o imaterial; e, e, e...
O tema do cigarro serve-lhe, por exemplo, para tecer alguns comentários sobre a «leveza» das ligações em rede (Net), para contar a história da cigarreira de Crowley onde este terá escondido uma enigmática carta a Pessoa ou, até, para estabelecer relações desejáveis entre a imaterialidade do fumo e a figura do judeu errante. E, porque escrevi «judeu errante», sublinho as passagens onde se referem as campanhas nazis contra o tabaco e os estudos do médico alemão Fritz Lickint, que, já em 1939, publicava um trabalho sobre a relação entre fumo e cancro no aparelho respiratório.
A Matéria de Que São Feitos os Sonhos conta centenas de histórias, em ritmo levemente provocatório, e recorda, sobretudo, que enquanto actores conscientes não necessitamos de ser protegidos daquilo que nos dá prazer. Lembre-se que a radicalidade das actuais campanhas já chegou ao ponto de passar uma borracha sobre vários retratos (o que remete para o belíssimo começo de Kundera em O Livro do Riso e do Esquecimento): Lucky Luke, os Beatles e Malraux são apenas três exemplos de censura histórica.
Como diz Harvey Keitel em Smoke: «Cigarros hoje, sexo amanhã», e hoje já nem a simples pergunta «Desculpe, tem lume?» seria permitida a Bacall antes de ensinar Bogart «how to whistle».

10 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

O que vem dentro dos maços pouco tem de tabaco. Deviam descobrir o produto em maior percentagem e baptizá-los com esse nome. Veremos se os fumadores actuais duram tanto tempo...
Vão (quase) doze passas. Bom ano.

miguel. disse...

Compay Segundo morreu com 96 anos, segundo ele passou 91 a fumar charutos... Andy Kaufman que nunca fumou... morreu com cancro nos pulmões... pelo sim pelo não vou continuar a fumar os meus Camel's… 2008 será um ano complicado quanto a fumos, tenho que admitir que não consigo ler sem a companhia de uns cigarritos, como tal vai ser muito complicado continuar a frequentar cafés onde nãos se possa fumar… acaba assim um hábito adquirido nestes últimos anos café/livro/cigarro.

Cristina desejo-vos um bom final de ano

Bj’s

Anónimo disse...

Num país chamado Espanha, que também pertence à famigerada U.E., de Madrid a Cáceres, de Badajoz a toda a Andaluzia, posso fumar em 90% dos espaços. Os manipuladores da opinião pública portuguesa mentem com todos os dentes quando dizem que em Espanha a lei é rigorosa. Os crápulas é que mandam na nossa vida e estão em todos os antros do sistema, da miserável TV aos jornais, às revistas e a outros que tais.

Anónimo disse...

Sem querer abeirar-me de Henrique Garcia Pereira (que não li), eis dois factos sobre cigarros:

Numa noite de trovoada medonha, um amigo que apreciava sobremaneira esse espectáculo mediático de luz e som, abriu uma janela de casa para apreciar melhor o panorama. Acendeu um cigarro, para maior deleite. Quase de imediato, dá-se um relâmpago. Teve uma morte fulgurante.

Dois amigos conversavam na berma do passeio de uma avenida frondosa. Quando um deles deu a última puxa no cigarro, atirou-o para estrada com um piparote. Ia a passar um descapotável e a beata acesa caiu entre o pescoço e a camisa do condutor. Desvairado com a queimadura, este acelerou, guinou e embateu com estrondo numa árvore, que lhe caiu em cima, matando-o.

Como se vê, o cigarro mata.

A Alphonse Allais

Bom ano!

Armando Rocheteau disse...

Bom Ano.
Fico sempre mudo e extasiado quando te visito.
Venham mais posts.

Ana Cristina Leonardo disse...

A todos muito, muito, obrigado. Mas já que o assunto é o fumo, não me quero despedir de 2007 sem relatar uma história edificante relacionada. Foi a Milú quem ma recordou.
Por causa de um cigarro morreu também o escritor inglês Saki (Hector Hugh Munro; 1870-1916), mas trincheiras da Primeira Guerra. Um camarada de armas resolveu acender um cigarro, denunciando assim a sua posição ao inimigo. Diz-se que as últimas palvaras de Saki foram: «Put that bloody cigarette out».
Há um livro de Contos dele traduzido em português. Merece mesmo a pena. Leiam e divirtam-se muito em 2008. Ou, pelo menos, tentem! A vida, bem vistas as coisas, não passa de uma anedota de deus.

Anónimo disse...

"Henrique Vila-Matas"

Aiaiaiai Será que li bem?

Anónimo disse...

Acho que percebi agora a origem do erro: queres nacionalizar o Vila-Matas!

Ana Cristina Leonardo disse...

Enrique, naturalmente.

menina alice disse...

Nestes dias - difíceis para quem deixou de fumador há pouco tempo - quase me deixo tentar por essa fabulosa máxima (antes ignorante que fascista), que acabei de adoptar para 2008.

Bom ano. ;)