14/10/07

Do Fraco Consolo da Poesia

Não há quarto segredo, Bento XVI não virá a Fátima e Pedro Santana Lopes não falou.
Na Cova de Iria, os peregrinos fartaram-se de esperar pela abertura do novo templo, e com muito menos paciência do que a demonstrada por Job manifestaram-se ruidosamente: «Isto foi construído com o nosso dinheiro!»
Dinheiro que ascendeu, não sabemos se ao céu mas seguramente a cerca de 80 milhões de euros (o dobro do previsto): «Foi tudo pago com (o) que os peregrinos ofereceram a Nossa Senhora», garantiu o reitor do Santuário Luciano Guerra.
Nas declarações de Monsenhor - o mesmo que com sábia clarividência explicou ao Jornal de Notícias, a propósito da violência doméstica e do divórcio: «Há o indivíduo que bate na mulher todas as semanas e há o indivíduo que dá um soco na mulher de três em três anos» - não houve qualquer referência à obra, perdão, ao banco de Jardim Gonçalves, contra o qual vocifera de novo Joe Berardo com visível satisfação, a propósito da dívida de 12, 5 milhões de euros que terá sido perdoada a um grupo de empresas de que o filho do banqueiro, Filipe Jardim Gonçalves, era sócio.
Pergunto eu: além da soma ser bastante inferior à oferecida a Nossa Senhora, que pai não perdoaria a um filho?

Por falar em filhos, continua a saga Maddie: prova do avanço galopante da ciência, veio a público que o espermatozóide de Gery não fecundou a criança desaparecida. Terá sido ela levada pelos extraterrestres em que acredita Paul Allen da Microsoft, pelo menos o suficiente para doar 20 milhões de euros a um projecto que já espalhou 42 antenas parabólicas nos Estados Unidos em busca de contacto?
Note-se: 20 milhões de euros continuam a ser, ainda assim, menos dos que os 80 milhões da nova catedral de Fátima embora mais do que a dívida que Jardim Gonçalves terá perdoado.
Perdão e caridade também para Carlos Cruz que regressou, entretanto, aos palcos do Casino Estoril como apresentador de um espectáculo de fados, enquanto continua - alegremente - a decorrer nos tribunais o caso Casa Pia que recua aos idos de 2002 e para o qual, segundo Catalina Pestana, citando alguns juristas, foi criado expressamente o artigo 30 do novo Código Penal que atenua as penas referentes aos crimes de abuso sexual:
«Antes, um crime de abuso sexual contava as vezes que uma vítima era abusada; o actual Código Penal diz que um crime continuado de abuso sexual conta como um único crime. Eu percebo por que é que foi preciso esticar no tempo este processo, com o tribunal a permitir a repetição de perguntas ad infinitum»
Ao contrário de Carlos Cruz - a respeito de quem se repete à exaustão que é inocente até se provar ser culpado - a ex-Provedora tem vindo a ser criticada com veemência, nomedamente pela Associação dos Trabalhadores da Casa Pia de Lisboa, que a acusa de ter instalado um clima de terror na instituição. É um ponto de vista. E para quem ande distraído, recorde-se como o «ponto de vista» se tornou no princípio gnoseológico do mundo moderno.
Entretanto, o beato Al Gore arrecadou o Nobel da Paz - para descanso das boas consciências.

Por falar em ecologia, e porque o planeta rebenta pelas costuras, visivelmente overbooking apesar da baixa de natalidade ocidental, talvez seja uma boa notícia que, segundo um estudo realizado pelo Serviço de Biomédica e Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, cerca de 50% das pessoas idosas institucionalizadas admitem a legalização da eutanásia.
E quando o Estado já é encarado como legítimo legislador da morte, que mais nos sobra? É o hegelianismo no seu apogeu: «O racional é real e o real é racional». Estamos lixados.

Herberto Helder em Os Passos em Volta será fraco consolo. Ainda assim:
Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?

5 comentários:

Anónimo disse...

Gostava de dizer uma coisa sobre a eutanásia. "Eutanásia" é uma palavra oca, uma generalidade oca que só provoca confusão na cabeça das pessoas. Se é para começar um debate sobre a eutanásia é preciso em primeiro lugar distinguir os vários tipos de eutanásia. Um desses tipos, a "eutanásia passiva" é legal e praticada na maioria dos hospitais.

A questão é: que tipo específico de eutanásia querem ver legalizada?

Uma possível taxinomia:

"Passive euthanasia is the most accepted form, and it is a common practice in most hospitals.

Non-aggressive euthanasia entails the withdrawing of life support and is more controversial.

Aggressive euthanasia entails the use of lethal substances or force to kill and is the most controversial means."

Anónimo disse...

Agora segundo a minha própria filosofia:

O debate à volta do Estado poder legislar sobre vida/morte é inútil porque assenta num pressuposto errado: a ideia que há seres vivos.

Neste mundo globalizado, mediatizado e virtualizado somos todos Zombies.

Já não há Vida no planeta.

Anónimo disse...

Essa visão apocalíptica foi só uma desculpa para ir ao café beber uns favaios com cerveja.

Ana Cristina Leonardo disse...

Manuel, afinal não tinhas uma coisa para dizer mas sim três. Segunda coisa, concluo: os zombies bebem favaios com cerveja. Uma má combinação, digo eu, mas naturalmente é apenas um ponto de vista.

CC disse...

Deliciosa leitura, esta. Verdadeiro gelado de morango em dia de calor infernal. Grato por isso, Ana.

E um beijo. Este.