Juan Rulfo, (começo de) É que Somos Muito Pobres, in A Planície em Chamas, Cavalo de Ferro, 2003
Aqui vai tudo de mal a pior. Na semana passada morreu a minha tia Jacinta e, no sábado, quando já a tínhamos enterrado e começava a abalar-nos a tristeza, começou a chover como nunca. Ao meu pai isso irritou-o, porque toda a colheita de cevada estava a secar na eira. E o aguaceiro chegou de repente, em grandes ondas de água, sem sequer nos dar tempo para esconder nem que fosse um pequeno molho; a única coisa que pudemos fazer, todos os da minha casa, foi ficarmos arrimados uns aos outros debaixo do telheiro, vendo como a água fria que caia do céu queimava aquela cevada cortada tão recentemente.
E só ontem, quando a minha irmã Tacha acabava de fazer doze anos, soubemos que a vaca, que o meu papá lhe ofereceu no dia do aniversário dela, tinha-a levado o rio.
O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e, no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar da cama com a minha manta na mão, como se tivesse acreditado que se estava desmoronando o tecto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono.
Quando me levantei a manhã estava cheia de nuvens escuras e parecia que tinha continuado a chover sem parar. Notava-se que o barulho do rio era mais forte e ouvia-se mais perto. Cheirava-se, como se cheira uma queimada, o cheiro a podre da água revolta.
À hora em que fui espreitá-lo, o rio já tinha perdido as suas margens. (...)
A minha irmã e eu voltámos a ir à tarde ver aquele amontoadeiro de água que cada vez se faz mais espessa e escura e que já passa muito por cima de onde deve estar a ponte. Ali estivemos horas e horas sem nos cansarmos vendo aquela coisa. Depois subimos pelo barranco, porque queríamos ouvir bem o que diziam as pessoas, pois lá em baixo, junto ao rio, há uma grande barulheira e só se vêem as bocas de muitos que se abrem e fecham e parece que querem dizer algo; mas não se ouve nada. Por isso subimos pelo barranco, onde também há gente olhando o rio e contando os prejuízos que fez. Foi ali que soubemos que o rio tinha levado a Serpentina, a vaca que era da minha irmã Tacha porque o meu pai lha ofereceu no dia do aniversário dela e que tinha uma orelha branca e outra avermelhada e muito bonitos olhos.
Não consigo perceber por que é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes me coube acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.
E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
(...)
O problema que há na minha casa é o que poderá acontecer no dia de amanhã, agora que a minha irmã Tacha ficou sem nada. Porque o meu papá com muito trabalho tinha conseguido a Serpentina, ainda era ela uma vitelinha, para a dar à minha irmã, a fim de que ela tivesse um capitalzinho, e não se tornasse puta como fizeram as minhas outras duas irmãs, as maiores.
FOTOGRAFIA DE JUAN RULFO - mais aqui
Aqui vai tudo de mal a pior. Na semana passada morreu a minha tia Jacinta e, no sábado, quando já a tínhamos enterrado e começava a abalar-nos a tristeza, começou a chover como nunca. Ao meu pai isso irritou-o, porque toda a colheita de cevada estava a secar na eira. E o aguaceiro chegou de repente, em grandes ondas de água, sem sequer nos dar tempo para esconder nem que fosse um pequeno molho; a única coisa que pudemos fazer, todos os da minha casa, foi ficarmos arrimados uns aos outros debaixo do telheiro, vendo como a água fria que caia do céu queimava aquela cevada cortada tão recentemente.
E só ontem, quando a minha irmã Tacha acabava de fazer doze anos, soubemos que a vaca, que o meu papá lhe ofereceu no dia do aniversário dela, tinha-a levado o rio.
O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e, no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar da cama com a minha manta na mão, como se tivesse acreditado que se estava desmoronando o tecto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono.
Quando me levantei a manhã estava cheia de nuvens escuras e parecia que tinha continuado a chover sem parar. Notava-se que o barulho do rio era mais forte e ouvia-se mais perto. Cheirava-se, como se cheira uma queimada, o cheiro a podre da água revolta.
À hora em que fui espreitá-lo, o rio já tinha perdido as suas margens. (...)
A minha irmã e eu voltámos a ir à tarde ver aquele amontoadeiro de água que cada vez se faz mais espessa e escura e que já passa muito por cima de onde deve estar a ponte. Ali estivemos horas e horas sem nos cansarmos vendo aquela coisa. Depois subimos pelo barranco, porque queríamos ouvir bem o que diziam as pessoas, pois lá em baixo, junto ao rio, há uma grande barulheira e só se vêem as bocas de muitos que se abrem e fecham e parece que querem dizer algo; mas não se ouve nada. Por isso subimos pelo barranco, onde também há gente olhando o rio e contando os prejuízos que fez. Foi ali que soubemos que o rio tinha levado a Serpentina, a vaca que era da minha irmã Tacha porque o meu pai lha ofereceu no dia do aniversário dela e que tinha uma orelha branca e outra avermelhada e muito bonitos olhos.
Não consigo perceber por que é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes me coube acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.
E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
(...)
O problema que há na minha casa é o que poderá acontecer no dia de amanhã, agora que a minha irmã Tacha ficou sem nada. Porque o meu papá com muito trabalho tinha conseguido a Serpentina, ainda era ela uma vitelinha, para a dar à minha irmã, a fim de que ela tivesse um capitalzinho, e não se tornasse puta como fizeram as minhas outras duas irmãs, as maiores.
FOTOGRAFIA DE JUAN RULFO - mais aqui
2 comentários:
Penso que precisas mesmo de te reconciliar com o mundo, ao dizeres mal de gente com a Lidia Jorge ou o José Luís Peixoto...
Espero que pelo menos os pasteis de nata da tua pastelaria sejam saborosos, Ana...
Lídias, Peixotos e etc. não fazem decididamente parte do meu mundo, na Pastelaria erguemos alto o pau de fileira, o que o Rulfo só confirma. E quanto a pastéis de nata só os originais, os de Belém....
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