29/11/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Outras guerras: a vitória dos “espetadores”»

 

22/11/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Os poetas vão ser colocados em lugares mais úteis»

« (...) Avisto as rosas que abriram rente ao muro que marca a bifurcação do caminho que leva ao largo. Hoje não está lá o pequeno cão preto que guarda a passagem, atento e carrancudo como Caronte, o barqueiro do Hades. Estas são rosas literalmente cor-de-rosa, túrgidas, de pétalas labirínticas e resistentes, e não brancas e frágeis como as rosas que florescem em cachos no mês de Maio junto ao barranco por estes dias cheio de água, uma água argilosa que corre rápida e rumorosa escondendo as margens cobertas de musgo do atalho agora impraticável, os campos à volta forrados de uma erva alta e viçosa que deixa em destaque o laranja – sóis artificiais que ornamentam os campos – das laranjeiras carregadas, todas as outras árvores nuas, com excepção de uma ou outra figueira cujas folhas ásperas se recusam a encarquilhar ou de uma ou outra nespereira de floração amarelada, desgrenhada e sem graça. De resto, a Natureza tem sido generosa em água e trovoadas nocturnas. Os raios que antecedem o estrondear dos céus iluminam o rio e assombram a sonolência dos barcos. Espectáculo que permite perceber a diferença entre o belo e o sublime, dão-se graças por aqui à existência de pára-raios.

15/11/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «A realidade é muito abusadora»

« (...) Sem querer retirar gravidade ao momento que vivemos – falo, claro, abstractamente, já que por aqui o tema da eleição de Trump não terá tirado o sono a ninguém –, não pude deixar de me lembrar das palavras do poeta egípcio Salah Jahine (1930-1986) incluídas no livro de memórias do marroquino Mohamed Berrada, "Como um Verão que não Voltará: o Cairo, 1955-1996" (Quetzal, 2010):

"Hammad não esquecerá o seu encontro com o poeta Salah Jahine no início dos anos setenta. Tendo vindo ao Cairo procurar elementos para a sua tese, instalara-se numa pensão perto da avenida Kasr al-Nil. Uma noite, quando estava estendido na cama, foi iluminado pelo som de um alaúde acompanhado de uma voz doce e, de tempos a tempos, por comentários e risos; os ocupantes do quarto ao lado haviam organizado uma pequena festa entre amigos. No dia seguinte de manhã, perguntou ao proprietário da pensão quem ocupava o quarto: era o compositor Sayyed Mekkaoui. À tarde, ao sair, cruzou-se com Salah Jahine, cujo rosto lhe era familiar. Cumprimentou-o e apresentou-se; começaram a conversar e, quando Hammad lhe disse que gostaria de o rever com mais tempo, o poeta concordou de boa vontade e combinaram jantar juntos. Hammad, ainda cheio de entusiasmo apesar das decepções, inclinava-se para a revisão radical da experiência da esquerda. Nasser estava morto e tinha deixado um vazio que ninguém sabia como preencher. Hammad, ao abrigo da sua juventude e inexperiência, elaborava críticas e indicava o caminho da esperança; Salah Jahine deixava-o falar, contentando-se em intervir de tempos a tempos para lembrar a sucessão de desmoronamentos e recuos que assinalava a morte do grande sonho. Havia na voz dele uma melancolia indescritível; mesmo quando gracejava, o seu riso breve não conseguia vencer o muro de tristeza que o habitava por inteiro. Depois do jantar, Salah ofereceu-se para acompanhá-lo; a conversa continuou. Hammad falava e Salah escutava pacientemente. Chegados à porta da pensão, este disse-lhe: — Ouça, ostaz Hammad, tudo o que diz é muito bonito, mas, infelizmente, não serve para nada. — E porquê, ostaz Salah? — Porque o povo sempre foi de direita! Hammad lançou um olhar surpreendido ao seu interlocutor; continuava embrulhado na sua tristeza, mas, de repente, desatou a rir. Riu-se com ele e depois separaram-se com um aperto de mão. Foi o seu primeiro e último encontro com Salah Jahine."

01/11/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia»

«(...) com quem trocar dois dedos de conversa sobre o pus dos livros quando já se foram Jorge Fallorca (“Decorrido meio século de existência, li e escrevi o suficiente para considerar a escrita – como qualquer outro acto criador – antropófaga até à vileza”, in Longe do Mundo, 2004), Juvenal Garcês (e os nossos diálogos que tanto versavam a genialidade de Ibsen como a mediocridade dos caciques culturais, sem esquecer a superioridade inquestionável das bananas da Madeira), Rui Martiniano, que conheci como Rui “Bancário” para reencontrá-lo no acaso das ruas de Lisboa, tantos anos passados e era ontem, editor da Hiena e tão minoritário como sempre fora, Francisco Brás, o meu vizinho actor motorizado, admirador incondicional de Mário Viegas com quem trabalhou e antagonista encartado do pedantismo, ou toda a outra gente morta ou em silêncio, aqui ou nas cidades, as trincheiras a abarrotar de equívocos e vaidades?