MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Dos frigoríficos às bombas»

«Sonhei que tinha tido início a III Guerra Mundial. Felizmente, ao acordar, nenhum cheiro a napalm o confirmava.

Diferente, na paisagem que fica para lá do muro da casa, apenas as ovelhas que haviam regressado aos pastos. Os cordeiros cabriolam felizes, desconhecedores do seu passado (e futuro) sacrificial; as ovelhas adultas ruminam pachorrentamente, fazendo soar as esquilas que lhes pendem ao pescoço.

“De noite ninguém lhes tira aquilo?” – perguntou uma vez um visitante do monte, avesso ao bucolismo dos badalos. “Não, de noite elas dormem e põem-se quietas com’ à gente” – responderam-lhe.

Há também uma ameaça de chuva. Troveja do lado de Espanha.

Ontem, antes do alvorecer, o nevoeiro tudo cobriu com o seu manto translúcido que só deixava passar a luz dos candeeiros de rua. Depois pôs-se um céu imóvel e baixo. O comedimento do astro intensifica o branco do casario e o verde das hortas. A nitidez da estampa combina com o Outono. Para tudo ser (momentaneamente) perfeito, apenas falta uma mata de castanheiros a caminho dos menires. Sabem lá da inclemência do Sol, os veranistas das praias!

E sim. O mar! O mar! Mas por aqui roga-se por chuva e baixa de temperaturas. E sim. É também uma questão de temperamento. Concedo. Mas não terá sido por acaso que ao inferno o retrataram como um cenário em labaredas. E quanto aos eremitas cristãos que buscavam a voz de Deus nas areias ardentes dos desertos, sabemos como acabaram: venceu-os a conversão de Constantino. Acabaram tão mal ou pior do que as personagens de Paul Bowles de "O Céu que nos Protege" (trad. José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, 1989), livro magnífico que Bernardo Bertolucci transformaria num catálogo de dunas e pores-do-sol que nem a interpretação de Debra Winger ou a música de Ryuichi Sakamoto conseguiu salvar.

Existem, claro, outros desertos e outros infernos. Num livro velhinho de H.P. Lovecraft que talvez ande perdido ou esteja arrumado na letra L ou na H., terei de confirmar, "Nas Montanhas da Loucura", o deserto é de gelo, fica na Antárctica e o escritor chamou-lhe “o mundo misterioso da morte gelada”. Talvez seja afinal uma paisagem mais consentânea com a loucura actual.

Aproxima-se o Inverno e nas rússias e nas ucrânias, apesar do fogo da guerra, a terra há-de cobrir-se de branco. A silhueta da Ceifeira ao longe não será uma alucinação, tão-pouco uma miragem. (...)

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Volta, Peter Sellers!»

«Como antigamente se dizia: mudámos de paradigma. Para trás, os tempos em que os comunistas comiam criancinhas ao pequeno-almoço e eutanasiavam os velhos com uma injecção atrás da orelha. Chegados os bárbaros que nunca mais chegavam do poema de Kaváfis, temos agora imigrantes de proveniências exóticas que raptam e comem animais de estimação, incluindo cães, gatos e gansos.

(...)

Não se pense, porém, que a regressão se dá só nas fileiras trumpistas. Em hordas mais civilizadas e culturalmente tidas por informadas, o retorno ao passado também está aí, à vista de quem o quiser ver.

(...)

Falo de Thomas Jolly, o responsável pelo espectáculo das Olimpíadas de Paris, os jogos que nos permitiriam ficar a saber da existência de um pintor e quadro obscuros que – prova insofismável de ignorância – muitos confundiram com "A Última Ceia". Afirmou ele, precisamente em defesa da referida mise-en-scène afinal dedicada ao deus Olimpo, e cito, que também “os reis franceses se empoavam e usavam saltos altos”. Quanto à fluidez dos géneros – um tema igualmente trazido para os Jogos – diria o actor: “Joana d’Arc, um dos maiores travestis da nossa História…”, sem deixar de perguntar (retoricamente, claro): “Não foi ela condenada por se vestir de homem?”

(...)

... como é que chegámos a isto? Quando é que passou a ser aceitável e respeitável reescrever a realidade (a contemporânea e a histórica), seja para inventar uma carnificina de animais domésticos, seja para fazer de Versalhes um exemplo a seguir e de Joana d’Arc uma santa LGBTQIA+?

Para acabar, uma nota incontroversa: esgotados os figos e as uvas, chegou como de costume o tempo dos marmelos e das romãs. E uma derradeira prece: que o louco Mister Chance nos salve, pela nossa rica saúde!»

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Cronicando»

«(...) Voltando à mexida no gerúndio. Problema menor, se não mesmo inexistente (como reconhece, aliás, o jornalista e escritor brasileiro Sérgio Rodrigues na sua entrevista ao Expresso de 24 de Agosto), inexistente e insuficiente para encobrir a carrada de problemas reais que enfrenta a língua em Portugal.

Desde logo, o aumento dos pontapés na gramática e na ortografia, nomeadamente, na comunicação social e por essa Internet fora. Bem mais grave, porém, do que os pontapés é a indiferença que estes geram. Há uns anos, quando Cavaco Silva trocou os ditongos e saiu-lhe “cidadões” no lugar de “cidadãos” ia caindo o Carmo e a Trindade, embora não o próprio (que por acaso cairia em resultado de um desmaio, mas só mais tarde, durante o discurso do 10 de Junho na Guarda).

Observe-se a diferença. Ouço Luís Montenegro dizer – não uma, minhas senhoras e meus senhores, nem duas, mas três vezes, caramba! – “será-lhe paga” (até o corrector ortográfico se enfumarou!) e um enternecedor silêncio é tudo o que lhe sucede. É certo que “será-lhe paga” é mais curto do que “ser-lhe-á paga”, mas note-se como o primeiro-ministro soletra pausadamente: mil quinhentos e vinte sete euros e setenta e oito cêntimos (não há cá arredondamentos!), enquanto abate sem peias a língua.

Como hipótese optimista para a benevolência, posso pensar em vergonha alheia. Afinal, não deixa de ser embaraçoso ouvir de um dos mais altos representantes da nação tal calinada. A primeira reacção é julgar que ouvimos mal. Confirmamos que ouvimos bem. Depois interrogamo-nos como raio se escreverá “será-lhe” (ainda agora não sei…). Finalmente, de tão constrangedor, preferimos esquecer o assunto.

A coisa fica teimosamente na cabeça. Tentamos esquecê-la, trauteando o "Que Sera, Sera", um sucesso na voz de Doris Day ouvido pela primeira vez no filme de Hitchcock, "O Homem que Sabia Demais” de 1956. Em vão.»