28/04/23

MEDITAÇÂO DE SEXTA: «O NADA É SÓ O RESTO»

 « (...) Das nêsperas à poesia, com breve desvio pela infância de onde afinal não saímos, e eis-nos chegados ao que interessa: ao poema. Assina-o Mário-Henrique Leiria: “Uma nêspera/ estava na cama/ deitada/ muito calada/ a ver/ o que acontecia// chegou a Velha/ e disse/ olha uma nêspera/ e zás comeu-a// é o que acontece/ às nêsperas/ que ficam deitadas/ caladas/ a esperar/ o que acontece.”

Sendo a época de nêsperas (há quem lhes chame magnórios) seria natural que delas me lembrasse. Mas não foi por isso. Foi por causa do parecer. Estava o parecer muito calado a ver o que acontecia, chegou uma Velha e disse: “Olha um parecer.” E, zás, comeu-o. A alternativa é imaginar a coisa substituindo parecer por ministro: estava o ministro muito calado a ver o que acontecia, chegou uma Velha e disse: “Olha um ministro.” E, zás, comeu-o.

Qualquer das hipóteses é plausível – incluindo a de Mário-Henrique Leiria – porque como disse, e muito bem, João Torres, entre os 26 e os 30 anos secretário-geral da Juventude Socialista, catapultado, chegado à idade madura dos 36, para o cargo de secretário-geral adjunto do partido: não vamos maçar o povo português com a semântica. (...)»

1 comentário:

Mário Sérgio disse...

O velho Dinis Machado.

«Há homens que não são fáceis de adjectivar.»

Tal como ele escreveu na morte de Ross Pynn, seu amigo e camarada de profissão.

«Chegaste tarde - dizia ele - O que vale é que é pouca coisa.
Pouca coisa, dizia ele: uma resma de material: artigos, notícias, horóscopos, o consultório sentimental, funerais, a sessão solene, os crimes na cidade. Era trabalho para quase uma semana e eu tinha que o despachar todo num dia.
Estávamos na antecâmara da morte decretada do "Diário Ilustrado". A rapaziada tinha abandonado o barco, e com razão. Ele ficou. Comprometeu-se a fazer o jornal até ao fim: um jornal que ninguém lia, feito de remendos, cheio de buracos que ele preenchia com textos esotéricos, ou vulgares, ou invenções, ou fotografias.
Eu disse:
- Vou-me embora, Ross. Quem mandou fechar o jornal, que mande o material para a tipografia.
Ele disse:
- Vai-me ser difícil fazer tudo sozinho.
Fiquei. Ficámos na solidão de uma grande sala, cheia de secretárias abandonadas; dividimos o trabalho: um caderno para ti, outro para mim. Trabalhámos muito depressa, com ele trabalhei sempre muito depressa. Depressa, e muitas vezes mal. Às vezes bem. A certa altura as teclas da sua máquina de escrever paravam de saltar, de espetar saom nas paredes. Ele diz ia: vamos comer qualquer coisa.
Tínhamos alguns gostos comuns: o Chandler, certos sub-produtos literários fascinantes, a B.D., a pescada cozida, os gangsters do cinema, as notícias com ar amalucado. Ele às vezes sorria, gordo, simples. Sabia sorrir.»