27/09/22

GUERRA NA UCRÂNIA: A PROPAGANDA COMO MAL ABSOLUTO

E foi depois de dar com o título de uma notícia que anunciava a fuga de Putin para um "palácio secreto" (o bunker de Hitler, topam...?) que descobri esta crónica que traduzo. 

E sobre a propaganda do lado putinista, lamento, lamento mesmo, mas não tenho matéria para fazer omoletes. A censura está instalada do lado de cá e para nosso bem, naturalmente, não fosse a gente correr a alistar-se no exército russo. 

«PODE AINDA DEBATER-SE A GUERRA NA UCRÂNIA?

Gérad Araud (Le Point, 18-9-2022)

«Desconfiemos dos especialistas de salão que povoam as TVs e impedem qualquer debate equilibrado sobre esta guerra. 

Quando dei por mim num estúdio de televisão para participar num debate sobre a guerra na Ucrânia,  senti imediatamente a armadilha em que havia caído. Todos os outros participantes eram “verdadeiros crentes” que vinham celebrar as recentes vitórias da Ucrânia não só sem lhes acrescentar qualquer contexto ou nuance, mas também impedindo que isso pudesse acontecer. Não me enganei. Não houve debate, pois todos estavam presentes com o objectivo de tudo fazerem para que a derrota da Rússia, doravante a seus olhos adquirida, fosse total. A Ucrânia devia recuperar todos os seus territórios, incluindo a Crimeia, e obter reparações do agressor, enquanto Putin enfrentava um novo julgamento em Nuremberg.

Que fique claro que eu ficaria muito satisfeito com esse resultado e que considero a vitória da Ucrânia do interesse do nosso país. Mas tenho a fraqueza de examinar a viabilidade e o custo de uma apólice quando esta me é oferecida e foi isso que tentei fazer. Qual seria o custo humano? É realista, por exemplo, ambicionar a recuperação da Crimeia anexada pela Rússia e que esta defenderá a todo custo, possivelmente recorrendo inclusive ao uso de armas nucleares? Talvez esteja errado, mas acho estas perguntas legítimas. O que eu fui dizer! Um respondeu que a Rússia tinha sequestrado trezentas mil crianças ucranianas e outro que a ocupação é pior do que a guerra.

Note-se que tais respostas não tinham nada a ver com a minha pergunta. Sentimentos opunham-se ao meu raciocínio. Olharam-me de lado. Não tive oportunidade de ser ouvido e calei-me. Nessa mesma noite, a minha conta no Twitter transbordava de insultos dirigidos ao pró-russo que eu era. Pró-Rússia por fazer perguntas sobre o custo de uma política; pró-Rússia por recusar o entusiasmo cego depois de um sucesso inegável, mas parcial.

A primeira vítima da guerra é sempre a verdade

Dito isto, que os genuínos pró-russos não tentem aproveitar-se de mim. A Rússia é de facto o agressor e seu exército está envolvido em atrocidades bem documentadas, independentemente do que Madame Royal pensa.

Não estou surpreendido com o que me aconteceu, que é apenas uma ilustração modesta da impossibilidade virtual de um debate equilibrado em tempos de guerra. “A primeira baixa da guerra é sempre a verdade”, terá dito Kipling. Uma verdade que, ao que parece, deixa de interessar a quem quer que seja quando as armas começam a falar. De facto, os beligerantes lançam-se sem pudor no exercício da propaganda e hoje é um eufemismo notar que os ucranianos, nesse aspecto, se mostraram melhores do que os russos.

Além disso, à nossa volta, na maioria das vezes escolhe-se um campo com base em convicções pré-existentes e não na análise ponderada do que acontece. Por exemplo, há bastantes pró-russos nos dois extremos do espectro político. Acrescente-se a isso o peso das emoções perante o sofrimento dos civis e temos criado um coktail de embriaguez, indignação e entusiasmo que silencia qualquer voz  tão-só levemente matizada.

Não houve, aliás, um especialista que twittou recentemente: “Pedir negociações foi o que fez Pétain; apelar a resistir foi o que fez de Gaulle”? Esta comparação absurda, que é a negação da ética do debate, visa tornar ilegítima a menor dúvida. Vemos mais uma vez o que a guerra nos traz: desumanização do adversário, maniqueísmo, credulidade e fanatismo; dispensa a razão, o questionamento e a dúvida. Porque escaparia ela agora ao seu destino?

Heroísmo de sofá

De nossa parte, nós que queremos entender o conflito antes de comentá-lo, que nos orgulhemos de fazer tudo para manter a cabeça fria. Nunca esqueçamos que nos enganam de ambos os lados, embora sem que, resultado dessa constatação, optemos por um cepticismo absoluto que seria tão pernicioso como a credulidade. Distingamos rigorosamente a análise dos factos da opinião que deles se pode deduzir. Admitamos que os "bons" ocasionalmente cometem erros, até crimes, e que os "maus" às vezes têm boas razões para a insatisfação.

Não esqueçamos que no final, se um ou outro lado está certo ou errado, infelizmente isso não é determinante, é o campo de batalha que decidirá; um campo de batalha onde nada está definido, onde ainda correrá muito sangue, onde a incerteza é a única certeza. Desconfiemos dos estrategas de salão que nos atacam com as suas sucessivas verdades sempre com a mesma segurança.

Mas o mais importante não reside aí: lembremo-nos sempre que esta guerra que não somos nós a travar significa a morte dos outros e a devastação da casa dos outros. Que este lembrete nos imponha um mínimo de decência e modéstia.
Demasiados especialistas das nossas TVs gostariam que a guerra decorresse até à morte do último ucraniano. Que a Ucrânia disponha de todas as armas para vencer, claro, mas que tal apoio não nos transforme em belicistas irrealistas, dispostos a todas as jogadas, seja qual for o preço para os ucranianos. Nunca percamos de vista o objectivo de restabelecer a paz, o que inevitavelmente supõe alguma forma de compromisso com o agressor.
“Bem-aventurados os pacificadores”, diz o Evangelho. Conte comigo: sempre me recusarei a ceder ao exercício fácil do “heroísmo do sofá” tão prepoderante hoje nos nossos ecrãs, mesmo que isso signifique ser insultado.»

5 comentários:

Luís Lavoura disse...

Que a Ucrânia disponha de todas as armas para vencer, claro

Para mim não é nada claro.

Quanto mais armas a Ucrânia tiver, mais prolongará a guerra, o que acarretará maiores sacrifícios para todos, incluindo os ucranianos.

Luís Lavoura disse...

considero a vitória da Ucrânia do interesse do nosso país

Não vejo por quê.

jj.amarante disse...

Sobre a falta de matéria para omeletes e a intalação da censura do lado de cá só posso concordar para quem se limite a ver a RTP, SIC, TVI, CNN e os jornais de maior tiragem.
Mas qualquer um se pode informar também na Al Jazeera, na CGTN (embora este último não ligue grande coisa à guerra na Ucrânia) nos jornais indianos que tem referido e ler o blogue "Estátua de Sal" de onde poderá tirar mais referências sobre senão putinófilos, pelo menos super críticos dos anglo-saxões, da NATO e da UE.

mensagensnanett disse...

Diziam que se não fosse o tampão-Ucrânia a Russia vinha até Berlim e Paris.
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Afinal parece que a Russia não mete medo... apenas procura sobreviver.
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Empresas europeias que consomem muita energia estão a mudar-se (beneficiando o partido democrata nas próximas eleições) para os EUA (lá a energia é mais barata).
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Pois: antes que os europeus mudem de ideias... os EUA já mandaram gaseodutos pelos ares.

joão viegas disse...

Ola,

De acordo com o que diz jj. amarante aqui em cima. Acrescento que, pelo menos aqui em França (onde resido), houve e ha noticias bem documentadas sobre os excessos cometidos do lado ukraniano, onde convém lembrar que nem tudo é um mar de rosas. Como é obvio, isto não chega para relativizar, muito menos para desculpar, a atitude da Russia, que é claramente o agressor neste caso e que se colocou complematente à margem do direito internacional (imperfeito) que temos, o que é muito preocupante. Mas é fundamental que estas noticias saiam e elas deviam também ser publicadas em Portugal. A gazolina que faz avançar as guerras é criar-se a ilusão que o mundo é a preto e branco...

Boas