Pronto. Já está. Já passou. Já foi e não doeu nada. Daqui a 10 anos, os
sobreviventes festejarão de novo a data apesar do reumático. A pergunta
“onde é que você estava no 25 de Abril?” fará cada vez menos sentido e
haverá cada vez mais gente a baralhar 1974 com 1794, ano em que
Robespierre mandou guilhotinar Danton, para morrer ele próprio de cabeça
decepada pouco tempo depois, episódio que ainda hoje contribuirá em muito para fundamentar a ideia de que a natureza humana é mesmo do piorio.
Por cá, tivemos o Salgueiro Maia mas, ainda assim, há quem ache que nunca fiando...
“O caso do Salgueiro Maia é um caso comovente, para nós portugueses e
para nós sociedade foi um bem ele ter morrido. É muito cru dizer isto,
para a família e para ele é uma infelicidade, mas nós precisávamos de um
puro. (...) Se ele continuasse a viver não sei se aguentaria isso. Não é
possível tanta aspiração de beleza e de pureza numa figura viva”,
resumiu cruamente Lídia Jorge, naquilo que poderá ser interpretado como
uma defesa do axioma “um herói bom é um herói morto”, e isto apesar de
Tolstoi se ter fartado de escrever romances que provam o contrário.
Claro que Tolstoi só há um e mais nenhum, mas se o cinismo entretanto
não nos matar a todos, e a descrença não nos liquidar de tristeza,
alguns estarão cá para os festejos, portanto, daqui a 10 anos, mas daqui
a 100, pevides.
Daqui a 100 talvez nem haja Portugal, conforme
apontam as estatísticas da nossa escassa reprodução, cumprindo-se por
essa via (ínvia?) o desabafo de Sena: “O nosso problema não é salvar
Portugal, é salvarmo-nos de Portugal”.
O tempo, esse grande
escultor, aproximará ainda mais o 25 de Abril do 5 de Outubro, mandando
para o galheiro da História as declarações pomposas de Luís Montenegro
(que, aliás, tinha um ano e usava fraldas no 25 de Abril): “Isto não é o
5 de Outubro na Praça do Município”, justificando assim o
inconseguimento de não deixarem falar os militares de Abril na
Assembleia da República, e eu se fosse militar também me chateava, pá e
mandava o Luís Montenegro mudar de fraldas (citando naturalmente
Eça...), já que a ingratidão é uma coisa muito feia e esta coisa do “25
de Abril é de todos”, como disse o ministro da Defesa, pode cair muito
bem num salão 40 anos depois, mas o facto é que alguém teve de dar o
corpo ao manifesto que não se foi lá por geração espontânea nem por obra
e graça de nenhum soft power sagrado.
29/04/14
24/04/14
20/04/14
Isto não é uma parábola pascal
Não, não vou citar o "Porque Não Sou Cristão" do Bertrand Russell. Nem
sequer debruçar-me sobre a contumaz questão do "porque" e do "por que".
Vou apenas explicar a razão de ser do meu anti-proselitismo, incluindo o
religioso.
Era eu menina e moça e fui visitar durante o Verão o Bom Jesus de Braga, na companhia de uns amigos dos meus pais que costumavam passar férias no Norte. Mais ou menos a meio da escadaria do Santuário, tropeço, quase literalmente, numa crente muito velha que subia os degraus de joelhos, ladeada por duas jovens que iam a pé agarradinhas cada uma ao seu rosário. Os joelhos da velha sangravam e o ar parecia-lhe custar a sair, ou a entrar, dos pulmões. Tive uma reacção puramente física de indignação, ou seja, a cena provocou-me vómitos.
Na minha inocência de menina e moça, o que mais me custava entender era o facto de as duas jovens parecerem não se importar com o sofrimento da crente, caminhando impávidas e alheadas a seu lado, como se não fosse nada com elas. Não me aguentei, e fui tentar ajudar a velha a levantar-se. Naturalmente, a velha não queria levantar-se.
Gerou-se pois uma grande confusão, os amigos dos meus pais tiveram de intervir, mas do que nunca mais me esqueci foi do ar desvairado e acusatório de uma das acompanhantes que gritava que agora a avó (era a avó) tinha de recomeçar tudo de novo, lá de baixo, porque eu dera cabo da promessa!
Vá lá uma menina e moça encher-me de boas intenções para ajudar o próximo!
Serviu-me de lição. Na realidade, duas. Nem sempre quem te quer bem te faz bem, e quando e se fizeres bem prepara-te para levar porrada em troca. São duas lições que me têm sido muito úteis ao longo da vida.
Era eu menina e moça e fui visitar durante o Verão o Bom Jesus de Braga, na companhia de uns amigos dos meus pais que costumavam passar férias no Norte. Mais ou menos a meio da escadaria do Santuário, tropeço, quase literalmente, numa crente muito velha que subia os degraus de joelhos, ladeada por duas jovens que iam a pé agarradinhas cada uma ao seu rosário. Os joelhos da velha sangravam e o ar parecia-lhe custar a sair, ou a entrar, dos pulmões. Tive uma reacção puramente física de indignação, ou seja, a cena provocou-me vómitos.
Na minha inocência de menina e moça, o que mais me custava entender era o facto de as duas jovens parecerem não se importar com o sofrimento da crente, caminhando impávidas e alheadas a seu lado, como se não fosse nada com elas. Não me aguentei, e fui tentar ajudar a velha a levantar-se. Naturalmente, a velha não queria levantar-se.
Gerou-se pois uma grande confusão, os amigos dos meus pais tiveram de intervir, mas do que nunca mais me esqueci foi do ar desvairado e acusatório de uma das acompanhantes que gritava que agora a avó (era a avó) tinha de recomeçar tudo de novo, lá de baixo, porque eu dera cabo da promessa!
Vá lá uma menina e moça encher-me de boas intenções para ajudar o próximo!
Serviu-me de lição. Na realidade, duas. Nem sempre quem te quer bem te faz bem, e quando e se fizeres bem prepara-te para levar porrada em troca. São duas lições que me têm sido muito úteis ao longo da vida.
17/04/14
Jorge Fallorca: Junho de 1949/ Abril de 2014
Estava doente. Melhorou. Adoeceu de novo. Piorou. Depois morreu. Acho
que foi Nabokov quem disse que a morte era uma banalidade. Quanto ao
Pessoa, escreveu: “Morrer é só não ser visto.” Apesar disto, nem uma
palavra? Afinal, caros senhores, morreu um poeta. E fosse o mundo um
sítio recomendável, um poeta valeria decerto mais do que um alqueire de
banqueiros.
Manuel António Pina vaticinou: “A poesia vai acabar, os poetas/ vão ser colocados em lugares mais úteis./ Por exemplo, observadores de pássaros/ (enquanto os pássaros não/ acabarem).” Sábio, porém, é quem discorre assim:
“Antes que seja tarde, devo dizer que considero o acto de escrever pouco saudável.
E gostaria que o tom fosse considerado como um desabafo, e não confessional.
Decorrido meio século de existência, aprendi a coabitar comigo mesmo.
Quer essa relação se assuma como um comovido flash back, ou um severo ajuste de contas.
Felizmente, sobra-me mais tempo para esquecer, do que para emendar.
Decorrido meio século de existência, li e escrevi o suficiente para considerar a escrita - como qualquer outro acto criador - antropófaga até à vileza.
Ninguém se surpreenderá se afirmar que a minha geração superou esse objectivo.
Excedendo-se no show off, ou no strip-tease onanista, onde um predisposto auditório se reconhece e excita.
A leitura das gerações que me precedem, em nada têm contribuído para perturbar, ou abalar, este assumido preconceito.
Os Pessoa, Kérouac, Ginsberg, Hemingway, Michaux, Aquilino, Cardoso Pires, o exaltante Saint John Perse, ou o inevitável Herberto, todos me recusaram uma escrita límpida e saudável.
Até mesmo em O Sorriso Aos Pés da Escada, o único Miller que conservo, a beleza é perversa e sublinhada por um fio de pus.
Todos eles me envenenaram uma predisposição que começou por ser saudada na escola, e onde a família se conformou em depositar esperanças de que continuasse a ser bonita.
E, sobretudo, que tivesse futuro.
Antes que seja tarde, devo esclarecer que ainda hoje tenho relutância em considerar o futuro, e que me reservo o maior desprezo pelo presente.
Sem pretender a honestidade que, dificilmente, reconheço nos outros, arrisco que a escrita - como qualquer outro acto criador - precisa de vítimas.
E alimenta vítimas.”
Desculpem-me a citação longa. Não é preguiça, é dar a palavra a quem sabe: Jorge Fallorca, “Longe do Mundo”, 2004. Partiu. Deixa mulher, um filho e dois netos.
Manuel António Pina vaticinou: “A poesia vai acabar, os poetas/ vão ser colocados em lugares mais úteis./ Por exemplo, observadores de pássaros/ (enquanto os pássaros não/ acabarem).” Sábio, porém, é quem discorre assim:
“Antes que seja tarde, devo dizer que considero o acto de escrever pouco saudável.
E gostaria que o tom fosse considerado como um desabafo, e não confessional.
Decorrido meio século de existência, aprendi a coabitar comigo mesmo.
Quer essa relação se assuma como um comovido flash back, ou um severo ajuste de contas.
Felizmente, sobra-me mais tempo para esquecer, do que para emendar.
Decorrido meio século de existência, li e escrevi o suficiente para considerar a escrita - como qualquer outro acto criador - antropófaga até à vileza.
Ninguém se surpreenderá se afirmar que a minha geração superou esse objectivo.
Excedendo-se no show off, ou no strip-tease onanista, onde um predisposto auditório se reconhece e excita.
A leitura das gerações que me precedem, em nada têm contribuído para perturbar, ou abalar, este assumido preconceito.
Os Pessoa, Kérouac, Ginsberg, Hemingway, Michaux, Aquilino, Cardoso Pires, o exaltante Saint John Perse, ou o inevitável Herberto, todos me recusaram uma escrita límpida e saudável.
Até mesmo em O Sorriso Aos Pés da Escada, o único Miller que conservo, a beleza é perversa e sublinhada por um fio de pus.
Todos eles me envenenaram uma predisposição que começou por ser saudada na escola, e onde a família se conformou em depositar esperanças de que continuasse a ser bonita.
E, sobretudo, que tivesse futuro.
Antes que seja tarde, devo esclarecer que ainda hoje tenho relutância em considerar o futuro, e que me reservo o maior desprezo pelo presente.
Sem pretender a honestidade que, dificilmente, reconheço nos outros, arrisco que a escrita - como qualquer outro acto criador - precisa de vítimas.
E alimenta vítimas.”
Desculpem-me a citação longa. Não é preguiça, é dar a palavra a quem sabe: Jorge Fallorca, “Longe do Mundo”, 2004. Partiu. Deixa mulher, um filho e dois netos.
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