A relação particular do fotógrafo Daniel Blaufuks com a “questão judaica”, vamos chamar-lhe assim, é pública e conhecida.
Oriundo de uma família alemã mas não suficientemente ariana, e por isso obrigada a fixar-se em Lisboa em 1936 (a que se acrescentam raízes polacas pelo lado dos avós paternos), Blaufuks já anteriormente mergulhara nesses anos de chumbo quando em 2002 apresentou Sob Céus Estranhos (título que fora de Ilse Losa, outra refugiada do nazismo).
Subjectivo e comovente, o filme tinha como fio condutor a experiência da sua própria família, servindo-lhe de cenário esse país estranho chamado Portugal, finisterra por onde passariam milhares de refugiados judeus, outros tantos seriam impedidos de entrar e uns escassos 50 adoptariam como casa alternativa.
Depois há a literatura. Por exemplo: no início da já longínqua década de 90, do seu encontro com o escritor Paul Bowles – o exilado voluntário de Tanger autor do maravilhoso O Céu que nos Protege – resultaria My Tangier (Difusão Cultural).
Em Terezín aposta-se de novo num projecto transversal: texto, fotografia e cinema. O texto (disponível apenas em inglês), explicativo e desmistificador, relata a sua própria génese, resultado do cruzamento do romance de W. G. Sebald, Austerlitz, com os diários de Ernest K, dois encontros ocasionais que acabariam por conduzir Daniel Blaufuks ao campo de concentração de Theresienstadt, hoje Terezín, a cerca de 60 km de Praga.
Tudo começou com a imagem de uma misteriosa sala de arquivo reproduzida por Sebald em Austerlitz. Sala que Daniel Blaufuks acabará também por registar, para cá do vidro, e que faz parte agora, praticamente intacta, do pequeno museu de Terezín. A partir daí, o fotógrafo iniciou a viagem possível.
Theresienstadt, campo-modelo, cidade-gueto exemplar onde o horror se disfarçava sob imagens de felicidade e harmonia (a Cruz Vermelha visitou Theresienstadt e deu-lhe a sua benção). Para que a mentira fosse perfeita, fez-se um filme.
É em torno desse documentário (cujo realizador e actores acabariam nas câmaras de gás em Auschwitz), e do qual sobreviveu película bastante, que se organiza o segundo pólo do trabalho de Blaufuks; matéria de propaganda onde os prisioneiros aparentam viver uma existência livre e banal, as crianças brincam e os homens jogam futebol – a prova radical que não há imagens inocentes.
No DVD incluído no álbum, Blaufuks desacelerou as imagens, cumprindo assim o desejo de Jacques Austerlitz, o protagonista do romance de Sebald, que nelas buscava obsessivamente o rosto da mãe. Pintou-as de vermelho, deu-lhes a cor do sangue e do J dos passaportes, e mostra-as ao espectador de hoje. Corpos expurgados de identidade. Um desfile grotesco de memórias falseadas. Rostos que Blaufuks se propõe resgatar. Gente que um dia teve nome e que, apesar de morta, nos interpela finalmente com a verdade possível.
Eloquente.
Terezín, Daniel Blaufuks, Tinta-da-China/ Steidl Publishers, 2010
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1 comentário:
Sempre admirei o trabalho do Daniel Blaufuks.
Gosto do olhar dele, independentemente da perspectiva com que olha e da distância curta com que o faz.
Não admira que o texto seja só em inglês — poucos o devem ler no nosso país...
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