13/07/09

A tal de FLIP

Não perguntei à própria e, ainda assim, apostaria uma rodada de cachaça em como Dona Margarida não assistiu à conversa do brasileiro Silio Boccanera com Richard Dawkins. 

O cientista ateu que, à imagem dos Beatles, corre o risco de se tornar mais famoso do que Jesus Cristo apresentou-se na FLIP no dia 2. Na manhã seguinte, enquanto ele se aventurava mar dentro na companhia do navegador que fez em solitário a primeira viagem de circum-navegação do mundo – certamente o mais notável habitante de Paraty, Amyr Klink –, Dona Margarida, a responsável pelo meu café da manhã, despedia-se assim: “Num momento em que se fala tanto de literatura em Paraty, também eu quero-te falar do meu autor”. Pausa. “Do autor de todos os autores...” Nova pausa. “Deus!” E, dito isto, ofereceu-me dois exemplares da “Sentinela”.

É pouco provável que Dawkins e Dona Margarida venham alguma vez a confrontar ideias, pensei. Na noite anterior, ao invés, era isso que esperava do debate com o autor de A Desilusão de Deus. Aconteceu outra coisa. Uma entrevista em registo leve e simpático que lhe permitiu recordar algumas das suas conhecidas ideias sobre ateísmo e religião, com um único momento realmente esclarecedor, quando o criador dos “memes” discorreu sobre darwinismo social: “Os que me acusam de partilhar essa visão, talvez se tenham limitado a ler o título de O Gene Egoísta esquecendo-se de consultar as notas de roda-pé, ou seja, o livro”. A plateia riu-se e eu com ela. Mas o que gostaria mesmo era de ter assistido a uma conversa entre Dawkins e Damásio. Não cabia no programa. Embora o programa fosse extenso.

A Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) começou no dia 1de Julho. Começou bem. A conferência de abertura esteve a cargo de Davi Arrigucci Jr., professor e crítico brasileiro (tido por Julio Cortázar como um dos melhores intérpretes da sua obra), responsável por vários estudos e ensaios sobre Manuel Bandeira (1886-1968). O poeta que um dia ameaçou ir-se embora para Pasárgada era o homenageado da 7ª edição da FLIP e Davi Arrigucci Jr. deu sobre ele uma aula magistral, daquelas que mete tudo: generosidade, inteligência, amor e erudição.

Sujeito de outras conversas, nomedamente de uma que reuniu três representantes da nova poesia brasileira – Heitor Ferraz, Eucanaã Ferraz e Angélica Freitas – e de uma evocação sentida feita em conjunto por Edson Nery, 87 anos, amigo e intelectual estudioso do poeta, e Zuenir Ventura, 78 anos, jornalista e ex-aluno do pernambucano, o homem que em 1930 versejava Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado/ Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente/ protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor./ Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário/ o cunho vernáculo de um vocábulo./ Abaixo os puristas saiu (poeticamente, falando) em braços quando Edson Nery gritou no final para uma plateia ao rubro: “Viva Manuel Bandeira!”. 

Se no que toca à poesia pouco mais aconteceu no programa oficial, ficcionistas não faltaram. Edna O´Brien, que encerrou a sua participação na FLIP lendo um poema dedicado a Barack Obama e cujo livro de estreia em 1960, Country girls, se viu banido pela igreja do seu país, juntou-se a Anne Enright, vencedora surpresa do Man Booker 2007 com Corpo Presente, (traduzido pela Gradiva). Ambas irlandesas, trouxeram ao Brasil o país de Joyce, tanto as suas mitologias literárias como as suas realidades mais negras. 

Os brasileiros estiveram presentes em força. Claro. Destaque (pessoalíssimo) para a prestação de Domingos de Oliveira (dramaturgo e cineasta) e para os escritores Cristovão Tezza (autor da Gradiva), Bernardo Carvalho e Milton Hatoum (os dois editados em Portugal pela Cotovia, que também publicou entre nós os referidos Angélica Freitas e Heitor Ferraz; Carlito Azevedo, da revista literária “Inimigo Rumor”, responsável em Paraty pela “Oficina Literária”; assim como Tatiana Salem Levy, nascida em Portugal em 1979 de pais brasileiros refugiados políticos, presente na FLIP a pretexto do seu livro A Chave de Casa, finalista do prémio Portugal Telecom de literatura de 2008). Quanto a Chico Buarque, cujo último e excelente romance, Leite Derramado, acaba de ser lançado também em Portugal pela Dom Quixote, fez frisson. A plateia, esgotadíssima, rendeu-se-lhe: uns às palavras, outros (sobretudo outras, desconfio) aos olhos verdes. 

Os franceses chegaram com uma delegação disposta ao escândalo, se excluirmos do pacote o afegão Atiq Rahimi que trocou, entretanto, o persa pelo francês, vencedor do prémio Goncourt 2008 pelo seu Syngué sabour - Pierre de patience e cujas obras estão traduzidas entre nós pela Teorema. 
O voyerismo do público não poupou Catherine Millet, autora do autobiográfico A Vida Sexual de Catherine Millet (ASA), Sophie Calle, artista conceptual que Paul Auster usaria como personagem em Leviatã, e Grégoire Bouillier, escritor e ex-namorado da própria Sophie Calle. Os limites entre ficção e vida privada foram assunto de debate, o que também viria à baila aquando da conversa com o jornalista americano Gay Talese, representante emblemático do new journalism, ou com o mexicano Mario Bellatin (a quem, estranhamente, ninguém perguntou por Vila-Matas) O assunto tem muito que se lhe diga, mas quase tudo ficou por dizer. À reflexão preferiu-se uma abordagem a roçar o estilo "People", sinal talvez dos tempos e/ou da multidão que arrasta a FLIP, muito longe já dos seus primórdios mais íntimos ou mais literários. Como se preferir.

Ao “show off” conseguiu fugir Lobo Antunes, um dos nomes mais aguardados. Conquistou a assistência falando largamente das suas raízes brasileiras mas não se ficou por aí. Falou de literatura. Falou de livros. Assuntos que nem sempre foram tema principal durante os cinco dias da festa. Correrá esta o risco de se transformar numa feira de vaidades? O futuro a Deus pertence, diria Dona Margarida. Quanto a mim, nos próximos dias vou seguir o poeta à letra: Ai que prazer/ Não cumprir um dever/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!

Imagem da manifestação promovida pelos habitantes da uma aldeia local encravada no condomínio privado das Laranjeiras, onde os condóminos chegam de avião particular e a entrada é guardada de metralhadora. Chico Buarque foi o único autor a referir-se ao assunto.


2 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

"Cientista ateu" que coisa estranha, pois a ciência é a religião moderna.

Anónimo disse...

:)