Confissão prévia: há muito tempo que um romance não me surpreendia tanto!
Confissão prévia que é também confissão de ignorância: Mohamed Leftah era ― até As Meninas da Numídia me ter chegado às mãos ― um perfeito desconhecido para mim. Neste caso, terei talvez desculpa: Mohamed Leftah era um perfeito desconhecido para a maioria dos leitores. Deixou de sê-lo quando o português Joaquim Vital, editor há muito radicado em França e responsável pela La Différence, o descobriu já no século XXI.
O escritor marroquino de expressão francesa (1946-2008) havia publicado um livro em 1992, Demoiselles de Numidie, e depois fora o silêncio. Vital tropeça no nome dele no Dicionário de Escritores Marroquinos assinado por Salim Jay. Com a ajuda de Jay, acabará por ir encontrá-lo no Cairo, com sete ou oito romances prontos a serem publicados. E foi o que fez.
As Meninas da Numídia é, pois, o seu romance inaugural e, mesmo que não tivesse escrito mais nada, só por este merecia lugar de destaque. Original e inclassificável, o texto recria o ambiente de um bordel de Casablanca onde as putas têm nome de flores e os chulos sodomizam louros escandinavos. A linguagem é simultaneamente poética e crua, e Leftah consegue ainda a proeza de, a uma só voz, escrever um hino às mulheres e à literatura.
Convoca-se Borges para este submundo de sífilis e violência e o leitor aceita-o com naturalidade, rendido à inteligência poética do autor; invoca-se Camus, a poesia pré-islâmica ou as sagas vikings, o mênstruo das mulheres, fufas e paneleiros, drogas e sexo "depravado" ― ainda assim o cocktail, explosivo, mantém um sabor inexplicavelmente sublime. O leitor passa do sórdido ao compassivo, levado pelo encantamento da escrita de Leftah, como se assistisse ao fluir de um rio que corre obrigatoriamente para a foz.
Moralismos e sociologias à parte, salvas ou perdidas as personagens pela palavra:
ENUCLEAÇÃO SÁDICA
CARNIFICINA NUM BAR DE MÁ FAMA
UM HUMILDE APOSENTO TRANSFORMADO EM MATADOURO
Assim falaram os jornais da tarde acerca de Rosa e de Almíscar da Noite, de Spartacus e de Zapata. Mas antes que esses jornais indecentes e conspícuos pousem nos vossos corpos despedaçados, nas vossas almas abandonadas, terei força para vos cantar ainda, ó chulos inocentemente cruéis do meu país, e a vós, esplêndidas raparigas-flores da Numídia, à sombra ardente das quais eu escrevo.
Belíssimo. E que este, sendo o primeiro, não seja o último dos romances de Mohamed Leftah traduzido para português.
As Meninas da Numídia, Mohamed Leftah, 2009, Quetzal
12 comentários:
Grande post, vou investigar a Amazon....embora tenha de parar de seguir recomendaçoes de blogues e começar a gastar esse tempo a ler efectivamente os livros...
É um GRANDE livro!
Não conheço mas despertas-me a curiosidade. Vou ver se compro e leio.
É a primeira vez que compro um livro sem conhecer o autor. Mas gostei do "post" e das pequenas coisas que fui lendo enquanto folheava o livro. Vai ser lido durante as férias - que, felizmente, começaram ontem.
Anabel e Rui, obrigada por confiarem na minha sugestão.
Olá Ana Cristina, li-o na sequência do seu post. Há muito tempo que não via a sordidez olhada de um modo tão belo e humano. Gracias pela sugestão. Melhoras para as dores de cabeça, mas tenha cuidado com as misturas entre o Ben-u-ron e o alcool :)
Cristina, fico sempre muito contente quando alguém lè os livros de que eu gosto... e gosta
Eu também! Mas este é muito especial. :)
eu já vendi uns quantos exemplares desde que escreveste a critica para o "expesso"...
mas guardei um para mim... vai a seguir ao que estou a ler neste momento... embora já tenha espreitado uma página ou outra...
Também me aguçou a curiosidade...
Talvez, talvez, o melhor livro do ano.
abraço
booktailors
talvez, sim... abraço
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