Teve vida curta e os textos que escreveu foram tudo menos longos. No ano do bicentenário do nascimento de Edgar Allan Poe (1809-1849), a Quetzal, com o Círculo de Leitores, abalança-se aos seus contos completos.
“Todos os Contos 1”, com ilustrações do espanhol Joan-Pere Viladecans e tradução de J. Teixeira de Aguilar, tradutor com créditos firmados na ficção científica, é obra literalmente de peso que contabiliza 522 págs. e reúne 34 títulos, entre eles, “O Escaravelho de Ouro”, “Os Crimes da Rua Morgue”, “A Carta Roubada”, “O Gato Preto”, “A Queda da Casa de Usher”, “O Poço e o Pêndulo”, “O Barril de Amontillado” ou “O Retrato Oval”, para citar alguns dos mais conhecidos.
As histórias são eclécticas e vão do macabro ao policial, da ficção científica à sátira. “A Vida Literária do Ex.mo Sr. Thingum Bob Ex-Director da Goosetherumfoodle, Pelo Próprio” é excelente exemplo deste último género: “Estou já numa idade avançada e, como me consta que Shakespeare e o Sr. Emmons já faleceram, não é impossível que eu próprio venha a morrer. Ocorreu-me, por conseguinte, que faria melhor em abandonar o campo das Letras e descansar sobre os meus louros. Tenho, porém, a ambição de assinalar a minha abdicação ao ceptro literário deixando algum legado à posteridade; e talvez a melhor coisa a fazer seja escrever para ela um relato dos primórdios da minha carreira”.
Carreira é termo que só por total inépcia se invocaria em relação a Poe. Com vida e obra que o empurram para o panteão romântico dos escritores malditos, paradoxalmente, o norte-americano foi também o responsável pela morte do sujeito-lírico, esse arquétipo assassinado sem dó no seu ensaio “A Filosofia da Composição”.
Filho de actores, abandonado pelo pai e órfão de mãe, Poe seria perfilhado pelos Allan, família com quem manteve uma relação conflituosa. Levaria uma vida errática que registou expulsões escolares e do exército, viuvez precoce, despedimentos, álcool, drogas e tentativa frustrada de suicídio, para terminar aos 40 anos de modo ainda hoje não esclarecido: encontrado na rua em delirium tremens morreria poucos dias depois sem nunca ter recuperado completamente a consciência.
Deixou uma única novela longa – “A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket” – e ensaios de crítica literária, poemas e contos. É reconhecidamente o precursor do género policial e os seus textos de terror psicológico continuam a arrepiar-nos. Porém, ao contrário dos românticos, a eficácia de Poe residirá sobretudo na sua fina ironia. E, capaz de desassossegar o leitor não tanto pelo recurso a fantasmagorias góticas delirantes mas mais pelo excesso de racionalidade (leia-se, por exemplo, “A Aventura sem Paralelo de Um Tal Hans Pfaaall”), o autor de “O Corvo” descreve um medo real, autêntico, que surge de dentro – como alguém resumiu, “não é o medo que origina a neurose, é a neurose que origina o medo”.
Sempre redigidos na primeira pessoa, os seus contos colocam em cena protagonistas que se confrontam consigo próprios, sujeitos inquietos e inquietantes num mundo que segue o curso normal. Apesar de ter ficado colado à ficção fantástica, poder-se-ia dizer dele o que de si mesmo diz o narrador de “O Mistério de Marie Rogêt”: “Não há no meu íntimo qualquer crença no sobrenatural”.
É difícil acrescentar o que for sobre um escritor acerca do qual já se escreveram mais quilómetros de frases do que aquelas de que o próprio foi capaz. Mas se entre o caos da loucura e a lucidez clara e distinta a fronteira, a existir, é muito ténue, talvez seja nesse território movediço que o devemos situar. Longe de folclores mais ou menos satânicos, é do próprio homem dividido entre o ordinário e o extraordinário que Poe fala. De nós, portanto. Passados dois séculos, o medo continua a ser servido ao natural.
Todos os Contos 1, Edgar Allan Poe, 2009, Círculo de Leitores/Quetzal
“Todos os Contos 1”, com ilustrações do espanhol Joan-Pere Viladecans e tradução de J. Teixeira de Aguilar, tradutor com créditos firmados na ficção científica, é obra literalmente de peso que contabiliza 522 págs. e reúne 34 títulos, entre eles, “O Escaravelho de Ouro”, “Os Crimes da Rua Morgue”, “A Carta Roubada”, “O Gato Preto”, “A Queda da Casa de Usher”, “O Poço e o Pêndulo”, “O Barril de Amontillado” ou “O Retrato Oval”, para citar alguns dos mais conhecidos.
As histórias são eclécticas e vão do macabro ao policial, da ficção científica à sátira. “A Vida Literária do Ex.mo Sr. Thingum Bob Ex-Director da Goosetherumfoodle, Pelo Próprio” é excelente exemplo deste último género: “Estou já numa idade avançada e, como me consta que Shakespeare e o Sr. Emmons já faleceram, não é impossível que eu próprio venha a morrer. Ocorreu-me, por conseguinte, que faria melhor em abandonar o campo das Letras e descansar sobre os meus louros. Tenho, porém, a ambição de assinalar a minha abdicação ao ceptro literário deixando algum legado à posteridade; e talvez a melhor coisa a fazer seja escrever para ela um relato dos primórdios da minha carreira”.
Carreira é termo que só por total inépcia se invocaria em relação a Poe. Com vida e obra que o empurram para o panteão romântico dos escritores malditos, paradoxalmente, o norte-americano foi também o responsável pela morte do sujeito-lírico, esse arquétipo assassinado sem dó no seu ensaio “A Filosofia da Composição”.
Filho de actores, abandonado pelo pai e órfão de mãe, Poe seria perfilhado pelos Allan, família com quem manteve uma relação conflituosa. Levaria uma vida errática que registou expulsões escolares e do exército, viuvez precoce, despedimentos, álcool, drogas e tentativa frustrada de suicídio, para terminar aos 40 anos de modo ainda hoje não esclarecido: encontrado na rua em delirium tremens morreria poucos dias depois sem nunca ter recuperado completamente a consciência.
Deixou uma única novela longa – “A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket” – e ensaios de crítica literária, poemas e contos. É reconhecidamente o precursor do género policial e os seus textos de terror psicológico continuam a arrepiar-nos. Porém, ao contrário dos românticos, a eficácia de Poe residirá sobretudo na sua fina ironia. E, capaz de desassossegar o leitor não tanto pelo recurso a fantasmagorias góticas delirantes mas mais pelo excesso de racionalidade (leia-se, por exemplo, “A Aventura sem Paralelo de Um Tal Hans Pfaaall”), o autor de “O Corvo” descreve um medo real, autêntico, que surge de dentro – como alguém resumiu, “não é o medo que origina a neurose, é a neurose que origina o medo”.
Sempre redigidos na primeira pessoa, os seus contos colocam em cena protagonistas que se confrontam consigo próprios, sujeitos inquietos e inquietantes num mundo que segue o curso normal. Apesar de ter ficado colado à ficção fantástica, poder-se-ia dizer dele o que de si mesmo diz o narrador de “O Mistério de Marie Rogêt”: “Não há no meu íntimo qualquer crença no sobrenatural”.
É difícil acrescentar o que for sobre um escritor acerca do qual já se escreveram mais quilómetros de frases do que aquelas de que o próprio foi capaz. Mas se entre o caos da loucura e a lucidez clara e distinta a fronteira, a existir, é muito ténue, talvez seja nesse território movediço que o devemos situar. Longe de folclores mais ou menos satânicos, é do próprio homem dividido entre o ordinário e o extraordinário que Poe fala. De nós, portanto. Passados dois séculos, o medo continua a ser servido ao natural.
Todos os Contos 1, Edgar Allan Poe, 2009, Círculo de Leitores/Quetzal
2 comentários:
Edgar
Allan
Poe
t
- Alexandre O'Neill -
não era o Borges que dizia que, para nossa grande sorte (e do Poe) fora um francês (sem "pedalada" na leitura em inglês)o primeiro a ler os seus manuscritos?
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