Morreu novo. Aos 56 anos. Nascido em Lisboa, em 1929, no passado dia 12 de Fevereiro teria festejado o seu octogésimo aniversário. Como Elliot Templeton, impedido de comparecer, nem por isso a Dom Quixote deixou de celebrar a data: publicou em volume único as suas obras completas. São 736 páginas que reúnem A Noite e o Riso, romance de 1969, Directa, romance de 1977, Square Tolstoi, romance de 1981, Estação, contos de 1984, Do Fim do Mundo, novela, primeira edição póstuma de 1990, e A Morte da Perdiz, peça de teatro radiofónico gravada (entre amigos) em 1956.
Hoje será difícil imaginar (ou talvez não), mas isto que transcrevo de seguida, retirado de A Noite e o Riso, foi uma pedrada no charco. Literário e restante.
Era uma vez duas e um quarto da manhã à porta do dancing ‘O Canário’. Pela Cidade ia conspiração, de luz acesa e janela aberta, tudo euforia de civis de civismo e baixas patentes descomandáveis. E eu vinha duma sessão dessa música. Horas longas de tabaco e copos de água inúteis, que me traziam ensopado em fúrias lentas. Por isso, a finais de reunião, entrara pensando ‘O Canário’ com intensidades de arrastar comigo um subversor muito alto e magro.
Ele suava nome, Sancho. E porque era enorme e quase famigerado avançou adiante. (…)
Fui sentar-me, grupo descortinado num recanto, e perguntei dez coisas para meter no meio delas ‘Onde pára a Zana?’. ‘Olhe-a’, disse um rapaz pintor.
Havia mesmo ao pé da nossa mesa um par em dança lenta, e era ela. Nunca eu viria a saber qual homem segurava tal mulher. Dois segundos depois de a ter olhado viu-me, e sorriu-me em contraponto.
Estou sentado num dancing e tenho a mão. Ainda em volta de uma bebida de pressão de ar.
Às vezes, acontece num sítio destes e em hora assim que o pecado original se derreteu num shaker, acabando-se a mortalidade infantil e a Polícia. Sinto essa harmonia.
Por cima dos ombros cansados, como um xaile da leveza dum suspiro de gato. Pelas luzes das mesas e fumo nos olhos trotam as mais certeiras notas de piano. Ando a treinar-me para conspirador e até deixei um Sancho no bengaleiro. Permitam-me, porém: que arregace outro género de mangas e talvez a minha noite não morra sem uma pitada de seriedade.
É excerto longo, mas está lá tudo: as imagens surrializantes, a história pessoal transfigurada, o erotismo e a política, a grande oficina da linguagem.
Escritor de culto que os anos foram lançando no esquecimento, praticamente desconhecido das gerações mais novas, passa por ele uma corrente que reúne nomes como Almada Negreiros, Mário-Henrique Leiria, Dinis Machado ou Maria Velho da Costa (para citar apenas autores em que a escrita se torna ela própria matéria - problemática). Bebe na grande literatura norte-americana dos anos 40 e 50 e não recusa as experiências de distanciamento à “nouveau roman” europeu: uma combinação cuja originalidade se vê acrescida pelo facto de a autobiografia de Nuno Bragança se casar de modo indissolúvel com a sua obra.
Num cenário dominado pela tristeza vil e apagada, para citar O'Neill, quando publicado, A Noite e o Riso funcionaria como uma lufada de ar fresco, um tónico contraditor de um país que vive então do arroto de passadas glórias, para citar Jorge de Sena. Mas não só.
A Noite e o Noite surgiria também a contra-corrente do neo-realismo, explodindo expurgado de obsessão ideológica e heroicidade ficcional, mais próximo da nova poesia do que do velho romance.
Directa e Square Tolstoi, publicados já no pós-25 de Abril, confirmam o escritor.
O primeiro (escrito ainda sob o marcelismo) é o primeiro grande livro de ficção a surgir nesse período em que tantos provaram nada ter, afinal, escondido na gaveta. Chega antecedido de despudorada confidência feita em nota introdutória: Talvez encontre um dia a forma de fazer o que por ora não consigo: exprimir um grande espanto meta-histórico.
Em Square Tolstoi mantêm-se as preocupações de estilo e estrutura. Ele narra:, assim começa um texto que não recusa o experimentalismo, mesmo se trespassado pela nostalgia do romance enquanto arte total (a de Tolstoi…).
Interrompida pela morte do autor, é-nos impossível saber que caminhos seguiria a obra de Nuno Bragança. A que deixou, porém, basta para que o consideremos um dos nomes mais marcantes da nossa modernidade literária.
9 comentários:
Na quinta-feira passada tive o livro na mão para o trazer. Mas quando tiver nova oportunidade, não falha.
Obrigaste-me a comprar o Actual, mas estás desculpada; porque depois de te ler, fui ver O Leitor
http://www.youtube.com/watch?v=6jx2ud3j1KA&eurl=
Enganei-me. Não era esse link.
http://img13.imageshack.us/img13/6321/chatjectdunechaussurecid.jpg
Por falar nisto, ontem, no Câmara Clara (RTP2), cujo convidado foi António Tabucchi, passaram uma peça acerca de Nuno Bragança.
Uso o presente post para deixar um desabafo: quando a Ana Cristina não escreve, o dragoscopio não mexe e o Saramago não se digna a debitar uma linha, poderia juntar-se a blogosfera lusa toda e resumi-la a uma única palavra: tédio.
Achei que devia deixar isto em algum lado, em nome da minha própria sanidade mental, já que estou desprovido de espaço próprio e "vivo na rua", numa caixa de cartão qualquer.
Pronto. Obrigado.
anónimo, não percebi tudo, mas obrigada eu
comecei ontem a noite e o riso e é de facto uma lufada inebriante, não me consigo deter. Lembrei-me de Reynaldo Arenas e de Boris Vian. Muito mais que de Luis Pacheco ou Mário Henrique Leiria.
Engraçado vir aqui parar hoje.
Cumprimentos
J, volte sempre. Quanto às ligações ao Arenas e ao Vian, eu limitei-me a falar de autores de língua portuguesa do século XX que saíam fora do espartilho neo-realista
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