31/05/08

Livros que valem a pena

Pessoa só estava certo às vezes. Ou seja, isto nem sempre se aplica: «Ai que prazer/ Não cumprir um dever/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!». Porque se certos livros são mesmo uma «maçada», nem por aproximação o adjectivo condiz com A Mesa Limão.
Não é preciso subscrever a teoria dos géneros de Todorov, nem sequer ter lido A Filosofia da Composição de Poe, para intuir que o conto tem que se lhe diga. Abreviando: se o romance, pela sua dimensão, permite certos deslizes (quem não acertar numa frase menos feliz de Proust que atire a primeira pedra...), em texto curto as mazelas são visíveis a olho nu, irremediáveis e, eventualmente, mortais. Ora, nada disso acontece nestes contos de Julian Barnes, cuja mestria para o género já ficara comprovada, por exemplo, no hilariante Do outro lado do Canal.
Neste caso a morte substiui-se à França enquanto tema unificador, filtrada aquela pelo envelhecimento das personagens (algumas inesquecíveis). E para arrumar já A Mesa Limão na prateleira certa: embora diferente na forma e estilo, pode ele emparceirar, pelo talento e matéria, com outros dois livros igualmente possuídos pela passagem do tempo – O Animal Moribundo, de Philip Roth, e Diário da Guerra dos Porcos, de Adolfo Bioy Casares.
O tom fica dado na abertura, com «Uma Breve História do Penteado»,
tríptico do mesmo homem que se senta no barbeiro em três idades diferentes, nunca, na verdade, perdendo o medo atávico de se fazer tosquiar, o mesmo que em criança o paralizava quando, acompanhado pela mãe, esta lhe definia o corte: «curto atrás e aos lados e em cima um bocado menos».
«A História de Matd Israelson», que recorda Tchékhov, é uma obra-prima de construção, relato da relação amorosa nunca consumada entre Anders Bodén e Barbro Lindwall, finalmente desfeita pela morte dele, o amor previamente desbaratado num diálogo equívoco.
«Reviver», outra história de amor (entre um homem velho e uma jovem fogosa), mergulha na vida do escritor russo Ivan Turgenev e casa na perfeição nostalgia e ironia: «Ele continuou a invocá-la até à morte. Foi, num sentido, a sua última viagem, a última viagem do coração. “A minha vida ficou para trás”, escreveu, “e aquela hora passada no compartimento do comboio, onde quase me senti como um rapaz de vinte anos, foi a última explosão da chama.” Quer isto dizer que quase teve uma erecção?».
Em «Saber Francês», exemplo maior do chamado humor à inglesa, o estilo epístolar dá-nos a ler as cartas que uma idosa francófona, recolhida num lar, dirige ao próprio Barnes, também ele um amante da língua e da pátria de Flaubert (e quem nunca leu o O Papagaio de Flaubert não sabe o que perde...), interrompidas no fim pela morte da remetente.
«Vigilância» retrata um casal de homossexuais, um deles melómano enfurecido pelo crescendo de tosse e espirros nos concertos; «Apetite» utiliza uma das paixões confessadas de Barnes (a cozinha) para narrar um pungente episódio de senilidade; «A Gaiola da Fruta» faz da sexualidade tardia o tema central...
Os 11 títulos – tão à-vontade na tragédia como na comédia, no humor como na melancolia, no vernáculo como no erudito, nos assuntos da alma como do corpo – são a prova de que a literatura ainda nos consegue provocar aquele «arrepio na espinha», de que falava Nabokov, o menos sentimental dos escritores.
Resumindo: Barnes terá envelhecido e, com ele, as suas personagens. Como o vinho do Porto, quanto mais velho melhor.

2 comentários:

Menina Limão disse...

Concordo totalmente. Ainda estou a lê-lo. Nunca antes lera Julian Barnes. Digamos que desta vez foi decisiva para a compra uma certa...como dizer? similitude nominal. Também gostei de saber que para os chineses o limão é o símbolo da morte.

É verdade que escrever contos é extremamente difícil. É comum ver-se muito boa (e má) gente falhar redondamente por pensar o contrário, enganados pelo tamanho do exercício. Julian Barnes tem revelado excelência como contista, sem dúvida.

Anónimo disse...

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