12/12/07

Cenas da Vida Quotidiana ou de como alguns Portugueses não Páram de me Surpreender pela sua Clarividência

Passo a explicar. Apesar de ambas as minhas pernas permanecerem intactas desde o dia em que nasci, e apesar de nunca ter estado de binóculos debruçada sobre o Sena pronta a salvar Michel Simon da sua vida de clochard — portanto, não sendo coxa nem voyeur — fui obrigada a notar a desenfreada agitação que possuí todas as quintas-feiras os meus vizinhos da frente.
Adivinho-os emalando roupa interior, sacos-cama, pratos e escovas de dentes, partindo depois apressados para destino desconhecido, com a urgência febril de quem partisse para África como bem notou Ruben A em O Outro que era Eu. Os que ficam ocupam-se em actividades bizarras: pregam tábuas nas janelas, enchem os ouvidos de cera ou põem a televisão aos berros. Separa-nos um Largo desafogado e, embora estando convicta, como dizia Léon Blum, que todos viveríamos melhor se os humanos fossem santos, não lhes cederia o lugar.
Passo a explicar. A partir de quinta-feira ninguém dorme na parte de baixo nem na parte de cima do meu bairro. Eu, que vivo precisamente a meio, disfruto de um silêncio virtuoso. Mas eu própria virtuosa, não sou cega. A partir de quinta-feira as ruas e avenidas enchem-se de milhares de crianças prematuramente alcoolizadas, ou seja, às 23, 24 horas já circulam em Esses estreitíssimos, fazendo tangentes a carros, Ecopontos e caixotes tradicionais. O meu cão às vezes ladra-lhes. Não é por mal. É por medo. Porque eu tenho um cão.
Quando o passeio nas manhãs que se seguem aos tornados, o pobre animal fica indeciso entre as ervas e os copos que esvoaçam (de plástico e quando há vento) no terreno descabelado do que em tempos foi um jardim. Sobram duas ou três árvores raquíticas e um chafariz nauseabundo, onde não ousaria entrar nem que o próprio Mastroianni lá estivesse tiritando à minha espera. E olhem que o Marcelo era tudo menos de se deitar borda fora.
Ora bem. Junto a esse simulacro de jardim — tão, tão simulacro que nem Platão o quereria na Caverna — havia uns bancos. De madeira escalavrada e verde descolorado mas, ainda assim, uns bons bancos. Com costas, se é que me faço entender. Nunca neles namorei, mas que davam um jeito danado às pernas de muitos munícipes, ah, isso sem dúvida. Ora bem. Tiraram os bancos!
Concluíram inteligências superiores que os três ou quatro restantes convidavam à permanência no local bêbedos, mendigos, toxicodependentes e outra gente de má raça.
Suponho que todos eles se equilibrem agora nos troncos das árvores raquíticas, dado o mar de plástico branco que continua a atapetar a nossa calçada típica, e cujo cheiro adocicado tanto baralha o meu cão. Proponho que a medida seguinte seja a Junta cortar o mal por junto e pela raíz. Cortem-se as árvores! Já agora, porque não a Câmara Municipal emparedar as arcadas do próprio Terreiro do Paço, dada a inexplicável mania de hordas de intocáveis se estenderem lá debaixo?
Só para acabar. O meu cão continua a enervar-se caninamente com os miúdos que a partir de quinta-feira pedem lume ao candeeiro e os meus vizinhos do Largo insistem em abandonar as casas a caminho do Ultramar.

6 comentários:

Luis Eme disse...

O Título podia ser: cenas do quotidiano de quem vive numa zona "in"...

Ana Cristina Leonardo disse...

Luís, vá lá dizer isso ao meu cão...

Joana Lopes disse...

Serão bloggers? É que a partir de de 5ª à noite a blogosfera está mais deserta - deve ir tudo para a sua rua.

menina alice disse...

"o Marcelo era tudo menos de se deitar borda fora"

Só para reforçar.

-pirata-vermelho- disse...

Não sendo tão grave o que vivi na minha rua (e que às vezes ainda vivo, quando é preciso, quando não me posso escapar) E ainda há quem queira revitalizar a baixa lisboeta... Foi o assalto ao sossego, à noite, que me fez pisgar-me, isto é, que me escovou! da cidade onde nasci.
E não tenho cão, senão o drama teria sido verdadeiro.

Ana Cristina Leonardo disse...

O meu cão agradece a compreensão demonstrada por quase todos os comentadores!