Talvez Emmanuel Levinas estivesse certo quando escreveu: "A questão metafísica primordial já não é a de Leibniz, de saber porque existe algo em vez de nada, mas porque existe mal em vez de bem".
Não sei se Cormac McCarthy leu Levinas; o facto é que é dos poucos escritores contemporâneos a pegar a besta de caras.
Nas Trevas Exteriores – “Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes (Mateus, 22: 13) – é o seu mais recente livro publicado em Portugal. Data originalmente de 1968 e trata-se do segundo romance assinado pelo autor de
Este País Não É Para Velhos.
Culla e Rinthy Holme são irmãos; a história começa com o nascimento de uma criança fruto da relação incestuosa entre ambos. Culla livra-se do recém-nascido, abandonando-o na floresta, e tenta convencer a irmã de que o bebé morreu após o parto. Quando Rinthy se apercebe da mentira, foge da cabana miserável onde os dois vivem escondidos e lança-se em busca do filho. Culla segue-lhe os passos e parte no seu encalço.
Nas Trevas Exteriores é o relato dessa errância, organizado em capítulos autónomos e desacertados, numa espiral de vagarosa violência que amplia a angústia do leitor. Como diz cirurgicamente no Prefácio Paulo Faria, o tradutor, confrontamo-nos “com uma experiência de genuíno desconforto físico, e a intensidade desse desconforto traduz a exacta medida da mestria literária de Cormac McCarthy”.
A escrita do americano é tudo menos consoladora. “God is war”, garantia o desapiedado juiz Holden em Meridiano de Sangue, personagem de quem podemos adivinhar alguns dos traços, aqui, em Trevas Exteriores, na trindade funesta com quem Culla se cruza ao longo do seu deambular vagabundo e sonâmbulo:
“Pra ondé que tu ias, vamos lá a saber?
Pra lugar nenhum, respondeu Holme.
Pra lugar nenhum.
Isso.
Ainda és capaz de lá chegar, comentou o homem. Caminhou ao longo da orla do fogo e deteve-se, olhando Holme de alto. Holme via-lhe apenas as pernas e as de Harmon, um pouco mais além. O lume esmorecera e havia somente uma única labareda em forma de língua de serpente, bífida e amarela, a assomar entre as brasas. Um terceiro par de botas acercou-se e Holme olhou-as. Tinham as biqueiras ligeiramente voltadas para dentro e estavam calçadas nos pés trocados.
Não é tudo, pois não? indagou o homem.
Eu cá não tenho mais nada, declarou Holme.”
Descendente de uma tradição sulista que inclui nomes como Flannery O’Connor ou William Faulkner, Cormac McCarthy combina, como aqueles, o sentido da tragédia humana com o grotesco, laço bem visível em alguns diálogos que roçam a idiotia ou, quiçá, a genialidade:
“E o qué um casco-de-mula? perguntou Holme. (...)
Têm a unha assim comá da mula.
Queres dizer que não têm o casco fendido?
Não têm fenda nenhuma.
Nunca na minha vida vi nenhum porco desses, disse Holme.
Isso não me espanta, comentou o porqueiro. Mas olha que podes aqui ver um, se tiveres isso na vontade.
Eu até gostava, disse Holme.
O porqueiro tornou a trocar o cajado de um braço para o outro. Dá-me impressão que isto vai contra o que diz a Bíblia, o qué que tu achas?
Sobre o quê?
Sobres estes porcos. Que são impuros por causa de terem o casco fendido.
Eu cá nunca ouvi dizer tal coisa, disse Holme.
Eu ouvi um pregador a dizer isto num sermão. O fulano sabia imenso do assunto. Disse que o demónio tinha a pata comá dos porcos. Jurou que ‘tava escrito na Bíblia, por isso eu acho que deve de ‘tar.
Também acho.
Disse que os judeus não comiam carne de porco por causa disso.
O qué isso, os judeus?
São umas gentes antigas que vêm na Bíblia. Mas ainda assim, isso não nos diz nada sobre um porco casco-de-mula, pois não? Em qué que ficamos, afinal?
Não sei, respondeu Holme. Em qué que ficamos?
Bom, afinal de contas é um porco ou não é? A fazer fé na Bíblia.
Eu cá diria que um porco é um porco, mesmo que nem sequer tenha patas.
Eu sou capaz de dizer o mesmo, concordou o porqueiro, porque, caso tivesse patas, a gente ‘tava à espera que fossem patas de porco. É como se um porco não tivesse cabeça, a gente continuava a perceber que era um porco, apesar de tudo. Mas se víssemos um porco a andar por aí com uma cabeça de mula, já a pessoa era capaz de ficar baralhada.
É verdade, anuiu Holme.
Sim, senhor. Faz um tipo pôr-se a matutar um bocado sobre a Bíblia e também sobre os porcos, hem?”
As conotações bíblicas da obra de McCarthy estão por demais assinaladas. A forma blasfema como transfigura linguagem e conteúdos sagrados, denuncia, porém, um feroz pessimismo ontológico, arredado de qualquer escatologia redentora: o Mal é uma realidade, não uma simples ausência de Bem.
Assim acontece neste título. A queda do casal de irmãos pelo pecado do incesto traduz-se num caminho sem expiação. Culla Holme, culpado do abandono da criança, vai semeando (involuntariamente?) um rasto de morte à sua passagem; Rinthy, na sua quase inocência, consegue escapar à vivência directa do inferno, para atravessar o livro num limbo de desespero silencioso.
Fantasmas andarilhos, ambos, personagens de uma estranha parábola que, apesar da absoluta materialidade da escrita de McCarthy, surge envolta num manto de irrealidade, são o Adão e Eva deste romance negro, tragédia anunciada nos pequenos textos a itálico que moram entre capítulos. E depois (ou antes de tudo) há o cego. Poderá a cegueira salvar-nos? Existirá salvação?
Nas mãos do leitor, um exemplo de genialidade literária e desassombro.
Nas Trevas Exteriores, Cormac McCarthy, 2011, Relógio D´Água, tradução de Paulo Faria