O italiano Primo Levi é conhecido, sobretudo, pelos textos que escreveu sobre a sua própria experiência do Holocausto.
Se Isto É um Homem ou As Tréguas são leituras obrigatórias para quem queira tentar compreender o que significou ser judeu na Europa (civilizada) de há pouco mais de meio século e (também) o que poderia querer dizer David Rousset, outro sobrevivente, com a frase: Os homens normais não sabem que tudo é possível.
Na sombra fica, por vezes, o facto de Primo Levi ser químico de formação e de o seu livro O Sistema Periódico (que parodia a tabela dos elementos químicos para a aplicar alegoricamente ao carácter multifacetado do indivíduo) ter sido, em 2006, considerado pela Real Academia de Londres o melhor livro de ciência alguma vez escrito.
O físico teórico Tullio Regge (Turim, 1933) é decerto menos popular junto do grande público, embora a comunidade científica lide há muito com coisas que levam o seu nome, como os Cálculo e Trajectórias de Regge. Receberia em 1980 o Prémio Einstein, e algumas das suas propostas dos anos 60 estiveram na origem e desenvolvimento da chamada “Teoria das Cordas”, modelo que, ao propor-se unificar a Relatividade e a Quântica abriria, segundo alguns, caminho a uma "Teoria de Tudo".
Contrariando as visões mais pessimistas de C.P. Snow que, em 1959, cunhou a expressão “duas culturas” para definir a dissociação entre “humanidades” e “ciências” que ele via crescer perigosamente na cultura ocidental, Diálogo Sobre a Ciência e os Homens é bem a prova que nem tudo estará perdido.
Sejamos, ainda assim, completamente honestos. Em primeiro lugar, o livro data, originalmente, de 1984. Nada nos leva a crer que, desde então, os “vasos comunicantes” entre “letras” e “ciências” tenham intensificado/mantido as trocas. Segundo, os interlocutores são, pela sua inteligência, eloquência, imaginação e curiosidade, espécimes raros. E se acrescentarmos a informação de que este diálogo resulta de um convite feito pela RAI que organizava, então, uma série de conversas sobre física dirigida ao grande público, talvez tenhamos que regressar, e mesmo duas vezes, ao “pessimismo” de Snow.
Não há muitos livros, afinal, em que, logo a abrir, uma das “personagens” diga: “Entre as coisas que tenho em comum com Primo Levi (…) há uma mania real e secreta: estou a estudar, por mim próprio, hebraico antigo. (…) Já consegui ler todo o Génesis”; ou nos quais, em comentário, a segunda “personagem” recorde a sedutora Rahab, descrita assim no Talmude: “qualquer homem que pronunciasse o seu nome imediatamente ejaculava”. E isto para princípio de conversa.
A dado passo, Regge invoca as suas experiências caseiras e confessa que “Deitava fogo a tudo. Uma reacção muito bonita era misturar anidrido arsenioso, que é algo venenoso…”; e logo Levi explicita: “É muito venenoso – é o veneno da Madame Bovary”.
Reclamam do latim que lhes ensinavam no liceo: o “latim de Cícero, cristalizado”, diz Regge; “bom para lápides”, acrescenta Levi que a Cícero contrapõe o “muito interessante” Celso que “explica como se operavam amígdalas no seu tempo”.
A conversa estende-se às respectivas famílias e origens, física das estrelas e física das partículas, religião, Borges, computadores...
Uma pergunta de Levi (que todos gostaríamos de fazer): “Porque vemos apenas três das onze dimensões?”. Um comentário (relativista) de Regge a propósito de Asimov: “uma viagem a uma velocidade superior à da luz (…) tais coisas dão-me traumas psíquicos”.
Em síntese: um livro que nos enche de vontade de aprender. E de rir.
Diálogo sobre a Ciência e os Homens, Primo Levi e Tullio Regge, Gradiva, 2012, trad. de Eduardo Lage
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