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16/07/22

E PORQUE HOJE É SÁBADO, TOMEM LÁ CAMÕES E DESCULPEM SE NÃO ARRANJEI UM INÉDITO (É Sábado, Não É?)

Se misericórdia e amor não vos atara,
A corda per si só se desfizera;
E, se isto deste modo acontecera,
Quem da prisão eterna me livrara?

Se amor, com vos prender, não me soltara,
Em cárcere infernal sempre estivera;
E, se do Ceo esse amor vos não decera,
Quem do Inferno ao Ceo me levantara?

Por demais forãm gemidos nem oferta,
Se amor vos não tivera tão atado,
E cuidam cegos que a corda vos aperta!

E vos de amor estais tam apertado,
Que só ele se acende e se desperta
Mais que algoz contra vos, por meu pecado.
LUÍS DE CAMÕES
Fonte:
Cancioneiro recopilado por Manuel de Faria. – Dedicado ao Conde de Haro em 1666, ms., f. 36. Transcrição segundo Cleonice Berardinelli, 1980. p. 457.

19/06/13

Dedicado aos jotas de todas as cores e feitios

"Não tenho vergonha de dizer que estou triste
Não dessa tristeza ignominiosa, dos que em vez de se matarem
fazem poemas,
Estou triste por que vocês são burros e feios
E não morrem nunca."

Mário Quintana

01/03/13

Sobre democracia...

We Bring Democracy To The Fish

It is unacceptable that fish prey on each other.
For their comfort and safety, we will liberate them
into fishfarms with secure, durable boundaries
that exclude predators. Our care will provide
for their liberty, health, happiness, and nutrition.
Of course all creatures need to feel useful.
At maturity the fish will discover their purposes.

Donald Hall

07/02/13

Um poema, um poema, que de resto é tudo gente feia.

Este é para ti, Jorge Fallorca.


Eu comi uma inglesa.
Foi em Sintra. Era feriado.
Com esparregado e essa tinta
mint-sauce. Em português,
molho de hortelã-pimenta
com vinagre. Uma beleza!
Alguma batata frita.
Mas eu quis fetos arbóreos,
musgo das fontes, avenca
e pétalas de camélia,
branca-rósea,
para enfeitar a travessa
e trincar, de quando em quando,
uma pétala na fímbria
das orelhas da inglesa,
dizendo: «O tempo está
tão lindo! Não achas, Daisy?»
«I like Shelley» — dizia ela, cheirando a colégio d'Oxford.
«Swifi Summer into lhe Autumn flowed...»
tem tradição. Vem de Chaucer.
«Eu também gosto» — eu disse,
paraninfo de Euridices —
«porém prefiro John Keats.
I stood tip-toe
Upon a liitle hill
tem mais naturalidade.
É como se estivesse aqui.
Quanto ao Byron, tu bem sabes
como ele soube viver Sintra:
A glorious Eden inhabíted
by savage Lusitanians.
À sova não me refiro.
Tudo isso é história antiga.»

«It's true! É verdade!»
(disseste-o, desmemoriada,
mas reticente...
e dobraste-me a parada)
«Mas não esqueça o que ele sofreu
quando dizer lhe vieram: Shelley morreu.
— Atravessou o Helesponto
a nado!...
I weep for Adonais...»

«Não, não é.» — contestei eu.
«Isso é do Shelley, dedicado
a Keats.
I weep for Adonais
because he is dead.

Eu choro Adonais
porque morreu.

Não está mal... a tradução,
mas tens razão!
Eu sou português e não
falo com a boca cheia.
Esta mania lusíada
de cuspir no chão é feia.
Nós não vivemos na selva.»

E ela, tola-lograda:
— «Don't be silly. Há o fado!
I like fado. Não gostas!
Tu tens a melena cheia
de brilhantina. You look
almost like a fadista!»

Passei a mão pela testa
e desgrenhei a madeixa,
dizendo: — «Queres morangos,
figos, amoras ou beijos?...»

……………………………………………
«Obrigado, obrigado, Daisy.
Não sei se estás a troçar
ou a brincar...
pulling my leg para ti.
Mas, enfim, vamos passear
até ali.»

(No fundo, o que eu desejava
era mordê-la na boca,
meter-lhe a mão entre os seios,
voar a cavalo nela.)

Foi uma tarde acabada
na relva, sob pinheiros,
chamaecyparis, ulmeiros,
sequóias, abetos, faias
e a cor azul das hortênsias.

Foi sobre a relva orvalhada
pelo frescor de um riacho,
quando o sol obliquava
e em volta era tudo seiva,
que eu comi uma pantera
escura, feroz, inglesa,
com o cheiro de violetas
debaixo do meu nariz.

(Fulva, para quem quiser
modas pré-rafaelitas, a pantera!
Tanto faz! Ou morena.
Convenção como convém a uma inglesa
convencional, de ocasião.)

E quando nos despedimos
— era noite, havia estrelas —
disseste com essa fleuma
que tão mal me fica a mim:
— «I'll see you later. Do come.
Vem amanhã tomar chá.
Eu gostar muito de ti.»

Loira, era loira a inglesa
que eu comi...
Verde, devia dizer,
Branca-rósea, uma camélia,
que eu comi, ou que colhi.
Já nem sei...
A savage Lusitanian,
dei-lhe só o que ela quis.
Ou queria...
Com peitinhos de perdiz
e alguma poesia:
The air was cooling
And so very still.
Ruy Cinatti, "À Memória de António Nobre e de Cesário Verde", in «Memória Descritiva»

22/03/10

Quando se tem um limoeiro em flor na varanda deve ser mesmo a Primavera que chegou seguido de um poema

When daisies pied, and violets blue,
And lady-smocks all silver-white,
And cuckoo-buds of yellow hue
Do paint the meadows with delight,
The cuckoo then, on every tree,
Mocks married men, for thus sings he:
“Cuckoo!
Cuckoo, cuckoo!” O word of fear,
Unpleasing to a married ear.

When shepherds pipe on oaten straws,
And merry larks are ploughmen’s clocks,
When turtles tread, and rooks, and daws,
And maidens bleach their summer smocks,
The cuckoo then, on every tree,
Mocks married men, for thus sings he:
“Cuckoo!
Cuckoo, cuckoo!” O word of fear,
Unpleasing to a married ear.
William Shakespeare

22/08/09

Dance me to the end of love

Cuando pienso en ellos,
hay um libro que abre sus páginas.
Una persiana baja,
el pájaro de las marismas se aleja de las
palavras.

Hay palabras que matan.
Hay un livro donde los amigos viven para
siempre,
envueltos en la luz ciega de las orquídeas.

Hay diez mandamientos sobre la evocación de
sus días.
Hay un martillo sobre los clavos de su cruz,
una hacha de piedra negra que refleja el
dolor.

Cuando pienso en ellos,
parece que llueve.
Llueve siempre en las plazas vacías y es domingo,
otra vez.
Entonces,
los perros duermen en las fincas abandonadas.
Todos se fueron.
Solamente los amigos me esperan del otro lado del cielo.

Cuando pienso en ellos,
hay un rastro de ternura en la nieve y
en la lava,
hay un anillo de acero que aprieta la garganta,
sus cuerdas de sonido,
y la neblina es más densa.
Hay un cántico, un secreto qur recomienza en las
vocales del nombre, y ya no es nada.

Esta voz es casi viento, José Agostinho Baptista, Macaronesia, 2009

18/06/09

Coisas de que gosto vá lá saber-se porquê


COPO

Não gosto de mesas de vozes em série,
nem de brindar à saúde de quem não conheço.
À semelhança deste homem que circunspecto
assiste, prefiro o silêncio das salas vazias.

Depois de o prato, a faca, a colher
e o garfo terem sido removidos da mesa,
ficamos sós com as nossas memórias,
trespassados pela luz
de uma lâmpada de sessenta watts
que de súbito emudece.

Na margem de um estremecimento
acende outro cigarro.
Nos vidros a chuva vigia.
Jorge Gomes Miranda, in O Acidente (Assírio & Alvim, 2007)

Roubado directamente daqui
Imagem de Edward Hooper

17/06/09

A propósito da crise no Irão lembrei-me que já houve um tempo em que a malta queria era ir para Pasárgada


Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Manuel Bandeira

Imagem da actriz iraniana Golshifteh Farahani

15/04/09

Eu vinha falar sobre o autismo dos nossos deputados que não sabem interpretar uma metáfora quando me saltou às canelas um poeta surrealista*

Avisto na rua um cão
Digo-lhe: como vais, cão?
Pensa que me responde?
Não? Pois bem, mas ele responde-me
E isso não é da sua conta
Agora quando se vêem pessoas
Que passam sem sequer reparar nos cães
Sentimos vergonha pelos seus pais
E pelos pais dos seus pais
Porque uma tão má educação
É coisa que requer pelo menos... e não estou a ser generoso
Três gerações, com uma sífilis hereditária
Mas, para não vexar ninguém, devo acrescentar
Que um número considerável de cães não fala com
muita frequência
Boris Vian, "Bom-Dia Cão" in Cantilenas em Geleia (tradução de Margarida Vale do Gato, Relógio D'Água, 2004)
* o assunto politicamente correcto de que não falei é este

15/03/09

A poem a day keeps the doctor away

Nada é o que permaneceu: nada, o arrojado epíteto
Que pronunciei pela noite tantas vezes até ser transportado
Para um escuro sono, ou o sono que continha um sonho.

Nisto havia uma enorme ausência contagiosa,
Mais espaço do que espaço, sobre a nuvem e o lodo,
Definidos apenas pela sua excessiva oscilação.

Despojado até à indiferença nas curvas do tempo,
Cujo fim eu conhecia, acordei sem um desejo,
E saudei o zero como um paradigma.

Mas agora despedaça-se: as imagens surgem incendiadas
Na calma esfera onde tenho vivido,
Regulando a paisagem ainda intacta:

O poder que imaginava, que presidia
Supremo a devastações abstractas,
É apenas uma mudança; os átomos que o dividiam

Completam, sem o saber, novas combinações.
Apenas descubro uma infinita finitude
Naquelas variações belas e estranhas.

É o desespero de que o nada possa existir
A cintilar no espírito e a deixar uma marca fumegante
De temor.
Olhem para cima. Nem presa nem liberta,

Uma questão inútil paira nas trevas.

A Destruição do Nada, in A Destruição do Nada e outros poemas, Thom Gunn, tradução de Maria de Lourdes Guimarães, Relógio D'Água, 1993

20/02/09

Com tanta campanha negra alguém que pague a porra da luz

A do Fripór vai andando. Mas não é única. Em Braga, onde o vetusto sem ofensa presidente da edilidade está sentado, desde quarta e até à segunda (penso que inclusive mas não sei se no fim-de-semana), tal qual Afonso Domingues debaixo da abóboda da Sala do Capítulo da Batalha à espera que esta lhe caísse em cima, e não caiu, a aguardar a visita da multidão de munícipes, que não chega, para lhes explicar, logo na hora, aquilo que o Ministério Público levou oito anos a tentar compreender... também decorre uma campanha. Que poderá, até, ultrapassar a outra. É um supônhamos. Mas o próprio Mesquita Machado deu a entender que assim seria ao considerar-se, e cito, vítima com V grande de uma campanha negra.
E pelo andar da negritude já teremos estado mais longe de concretizar aquela máxima que alguém em tempos escreveu junto ao aeroporto de Lisboa: «o último a ir-se embora apague a luz!» Mas ir para onde? Para Pasárgada?

10/02/09

Confessando a minha ignorância, eu hoje descobri um poeta


Poète, en dépit de ses vers;
Artiste sans art, à l'envers,
Philosophe, à tort à travers.

Un drôle sérieux, pas drôle.
Acteur, il ne sut pas son rôle;
Peintre: il jouait de la musette;
Et musicien: de la palette.

Une tête! mais pas de tête;
Trop fou pour savoir être bête;
Prenant pour un trait le mot "très".
Ses vers faux furent ses seuls vrais.

Oiseau rare et de pacotille;
Très mâle ... et quelquefois très "fille";
Capable de tout, bon à rien;
Gâchant bien le mal, mal le bien.
Prodigue comme était l'enfant
Du Testament, sans testament.
Brave, et souvent, par peur du plat,
Mettant ses deux pieds dans le plat.

Coloriste enragé, mais blême;
Incompris ... surtout de lui-même;
Il pleura, chanta juste faux;
Et fut un défaut sans défauts.

Ne fut "quelqu'un", ni quelque chose
Son naturel était la "pose".
Pas poseur, posant pour "l'unique";
Trop naïf, étant trop cynique;
Ne croyant à rien, croyant tout.
Son goût était dans le dégoût.

Trop crû, parce qu'il fut trop cuit,
Ressemblant à rien moins qu'à lui,
Il s'amusa de son ennui,
Jusqu'à s'en réveiller la nuit.

Flâneur au large, à la dérive,
Épave qui jamais n'arrive....

Trop "Soi" pour se pouvoir souffrir,
L'esprit à sec et la tête ivre,
Fini, mais ne sachant finir,
Il mourut en s'attendant vivre
Et vécut, s'attendant mourir.

Ci-gît, coeur sans coeur, mal planté,
Trop réussi comme "raté".


Sauf les amoureux commençons ou finis
qui veulent commencer par la fin il y
a tant de choses qui finissent par le
commencement que le commencement
commence à finir par être la fin la fin
en sera que les amoureux et autres
finiront par commencer à recommencer par
ce commencement qui aura fini par n'être
que la fin retournée ce qui commencera
par être égal à l'éternité qui n'a ni
fin ni commencement et finira par être
aussi finalement égal à la rotation de
la terre où l'on aura fini par ne
distinguer plus où commence la fin d'où
finit le commencement ce qui est toute
fin de tout commencement égale à tout
commencement de toute fin ce qui est le
commencement final de l'infini défila
par l'indéfini Égale une épitaphe égale
une préface et réciproquement
Tristan Corbière [o que inclui o auto-retrato]

24/11/08

Aniversário de Herberto Helder (foi ontem)

se do fundo da garganta aos dentes a areia do teu nome,
se riscasse com a abrasadura, se
em cima e em baixo mexido às escuras,
o forno com a mão a ver se ela podia
que uma púrpura em flor fosse até ao coração,
unhas e tudo,
que estremecesse, não por dito mas sabido
contra ti, e por artes
antigas trazer o ar, fazer uma
iluminação:
mudar o mundo para que o nome coubesse,
vivaz, tocado, fértil,
houvesse um dom inseparável, música, verbo:
se eu pudesse, se a terra
se atrasasse,
se pudesse em amarga língua portuguesa com o teu nome em qualquer
parte,
para eu mesmo riscar contra ti,
raiar contra ti,
sob
serapilheiras de sangue

20/11/08

Dois poemas com sexo e escusam de se pôr com ideias

Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás das mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meus Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Carlos Drummond de Andrade


Com Licença Poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado para mulher,
essa espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição para homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Adélia Prado

05/10/08

Herberto, o desejado


Engoli
água. Profundamente: - a água estancada no ar.
Uma estrela materna.
E estou aqui devorado pelo meu soluço,
leve da minha cara.
O copo feito estrela. A água com tanta força
no copo. Tenho as unhas negras.
Agarro nesse copo, bebo por essa estrela.
Sou inocente, vago, fremente, potente,
tumefacto.
A iluminação que a água parada faz em mim
das mãos à boca.
Entro nos sítios amplos.
- O poder de reluzir em mim um alimento
ignoto; a cara
se a roça a mão sombria, acima
da camisa inchada pelo sangue,
abaixo do cabelo enxuto à lua. Engoli
água. A mãe e a criança demoníaca
estavam sentados na pedra vermelha.
Engoli
água profunda.

Herberto Helder, A faca não corta o fogo, Assírio & Alvim, 2008
[roubado cerimoniosamente ao Miguel]

22/09/08

Excerto de «Iniji», poema que nunca foi um inédito de Herberto Helder

[…]
Um corpo tem a lembrança excessiva de outro corpo
um corpo já não tem imaginação
não tem paciência com nenhum outro corpo

Fluidos, fluidos
tudo o que passa
passa sem parar
passa

Ariadne mais fina que o seu fio
não consegue reencontrar-se
[…]

Este coração já se não entende com os corações este coração
não reconhece ninguém na turba dos corações
Corações cheios de gritos, de ruídos,
de bandeiras

este coração não é desenvolto com estes corações
este coração esconde-se destes corações
este coração não se compraz com estes corações

Oh cortinas, cortinas e ninguém vê Iniji

Stella, Stella constelada
Já te não levantas para mim, Aurora

Tão pesados
tão pesados
tão taciturnos seus monumentos
tão impérios, tão quadriláteros
tão esmagadores bárbaros, tão vociferantes,
e nós tão nenúfar
tão espiga ao vento
tão longe do cortejo
tão mal na cerimónia
tão pouco da nossa idade e tanto a passear

tão farinha
tão peneirada
e sempre na peneira

asas de morcego
batendo sempre contra a cara
[…]
Henri Michaux, Iniji, versão de Herberto Helder in As Magias, Assírio & Alvim, 1988
Retrato de Herberto Helder por José Rodrigues

13/07/08

Sem título

Nem o silêncio, nem uma praga, nem o estilhaçar de
um copo
te levarão para junto do mar e do amor.
Longe,
existe no sul, mutilada pelos assassinos,
uma vila onde nasceste,
algumas redes, alguns barcos, alguns peixes de olhar cego
no pensamento do pai,
minúsculas ilhas sem roteiro nem mapas,
pequenas magias que não te conduzem à alegria e às
estátuas de sal.

Agora,
são as filhas que esperam, três fontes, três enigmas,
três rainhas de um tempo de devastados tronos,
de breves antecâmaras da morte,
isto a que chamamos vida, amanhã, sentido dos dias,
e é tão-somente o que resta de um medo mais vasto, nas
fronteiras do mundo.

Algures,
nos caminhos que vão para norte, repousa ao
abandono, no sombrio hotel do esquecimento,
aquele que tanto amaste, que tanto amámos.
Mas tu vais e vens e não queres que vejam como às vezes
sofres.

Dobras-te como as espigas num campo amarelo,
num Verão antigo.
Danças seriamente sobre altíssimos saltos.
Espalhas à tua volta lantejoulas de tropicais sonhos,
de Méxicos belos e Las Vegas de falso ouro e melancolia.
Cantas no interior do fumo.
Mas a tua voz não tem o timbre das terras suaves.
E eu não sei como dizer-te
que nestes rios de mezcal
navegam príncipes azuis em tumultuosas vagas e há um
desespero de náufragos no coração dos amigos,
esses que não fogem do sonho e das lágrimas,
como se não tivessem um corpo aberto às navalhas,
inclinado sobre a dor,
à tua espera durante horas.

Não precisas de bater à sua porta.
Não respires demasiado, à beira dos seus jardins.
Não quebres os espelhos de prata onde se reflectem os
cisnes da sua água,
no meio do lago triste.
Vem pela noite, cruza as pontes, traz um pouco de
incenso,
e se partires,
vai com o sol ao longo da margem,
ao lado do mar.