18/07/11

A Europa e os Bárbaros

Desculpar-me-ão os leitores deste post o tom vagamente confessional (e, já agora, o meu gosto quiçá inflacionado pelos advérbios de modo).
Paris, uma punhalada no coração, escreveu Jack Kerouac; cito-o e subtraio-lhe a conotação poética.
Foi em Paris que me estreei no rigoroso controlo policial dos “papéis” (os Petits Papiers cantados por Gainsbourg), Barbès-Rochechouart, zona habitada maioritariamente por árabes, únicos viajantes tardios do último Metro sujeitos a identificação que a mim me gritavam sempre “Allez! Allez!”, até que uma vez fiz questão em ir para a fila, passaporte na mão, estrangeira, também eu.
Foi em Paris, aussi, que aprendi a distinguir racismo de xenofobia ao som da Linda de Suza que nesse dia não cantou. Convidada de um programa televisivo sobre emigração, falava quando o chefe de família da casa – homem de trato adorável – exclamou entre dois pinard: Estes portugueses estão em todo o lado! e, reparando depois no silêncio que se fizera à mesa, olhou para mim e sorriu: Não é contigo. Tu até podias ser francesa, cumprimento envenenado que, ainda hoje, julgo ter ficado a dever-se ao facto de gostar de camembert, cognac e falar francês sem “acento”.
Tudo isto aconteceu antes de termos lugar na Europa; éramos, então, cidadãos de segunda e emigrantes de terceira.
O meu amigo mexicano foi impedido de entrar em Espanha este mês. Destino: Madeira. Motivo: férias.
24 horas preso em Madrid, sem passaporte, sem máquina fotográfica, sem telemóvel e sem cinto das calças (apreendido). Devolvido à procedência por falta de documentação.
A saber. Reserva de hotel paga. Ok. Responsável pela estadia. Ok. Cartão de crédito. Ok.
Papéis em falta: comprovativo de depósito de 5200 euros (!) obrigatoriamente feito no México (!!), carta-convite (documento obscuro do qual as autoridades teriam de ser informadas com um mês de antecedência, de modo a poderem confirmar a sua veracidade).
Azar o dele, pois, ter nascido mexicano e sorte a minha ter nascido portuguesa (apesar de tudo, não é?).

8 comentários:

josé agostinho baptista disse...

E,para cúmulo,roubaram-lhe as malas.Tudo.Foi tratado como um criminoso,quando o seu único crime é ser sonhador e poeta como nós, os que ainda aqui andamos a remar contra as marés. Obrigado, Cristina.

Joana Lopes disse...

Muito bom, Ana Cristina.

João Lisboa disse...

Oh!... os advérbios de modo, essa dependência...

Ana Cristina Leonardo disse...

José, um abraço ao Olivério, sff
Joana, são os direitos humanos à moda da UE
João, tb tu?!

João Lisboa disse...

Nunca reparaste?...

m.a.g. disse...

"Cocorico"
Se esta onomatopeia simula o grito do coq, também é uma expressão de chauvinismo... rien ne vas plus, faites nos jeux.

Ana Cristina Leonardo disse...

João, confesso que não mas fico feliz por partilharmos essa dependência por palavras compridas
m.a.g., essa expressão lembra-me Las Vegas apesar de lá não falarem francês

josé agostinho baptista disse...

Os falsos amigos, essa sub-espécie que medra na proporção directa da merda que os consome e cerca, quando chega a hora de dar a cara por um amigo, escondem-na cuidadosamente sob um manto de desculpas e cobardias. Entretanto, no seu discurso quotidiano politicamente correcto, intelectual e chique,babam-se a falar de ser solidário, cúmplice, blá, blá, blá, etc.,etc. Mas basta um post como este para descobrir-lhes a careca.Deixemo-nos de tretas. Amigos, só alguns, e cada vez menos. Ah, e os cães.Bem-hajas, ana cristina leonardo.