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Dantes havia uns livros de capas amarelas debruadas a vermelho (ou vice-versa) que traziam, salvo erro, uma foice e um martelo em baixo. Apesar das cores chamativas eram sóbrios no
design, palavra estrangeira que não fazia então parte do vocabulário comum e que muitos, erroneamente, vieram a confundir mais tarde com
cayatte, talvez por também esta parecer uma palavra estrangeira.
Infelizmente, creio tê-los vendido há vários anos a um alfarrabista do Largo da Misericórdia. O alfarrabista foi misericordioso e ficou-me com aquilo tudo. O que me pagou deu-me, na altura, para vários maços de Português Suave sem filtro.
[E antes que a propósito do Português Suave sem filtro alguns clientes mais cuscos da Pastelaria se ponham a fazer contas à minha idade, informo já que sobre esse assunto só vou dizer o seguinte: sou, como a maioria esmagadora da população portuguesa, mais nova do que o Manoel de Oliveira.]
Voltando aos livros, quase todos literatura de auto-ajuda cujos títulos seriam coisas do género,
Como Depenar Galinhas, Perus e Aves em Geral sem Estrangular a Reforma Agrária ou
Como Virar o Volante à Direita sem Atraiçoar os Princípios Marxistas-leninistas Quando um Contra-revolucionário se Atravessa no Nosso Caminho...
Digo que os vendi infelizmente porque com eles foi-se também a única coisa decente que li na referida colecção: um romance de Ismail Kadaré chamado O General do Exército Morto.
Se me perguntarem, e espero que não o façam, não me lembro de grande coisa. Só sei que havia um general que ia, salvo erro a Itália, buscar os cadáveres dos soldados mortos durante a guerra. Creio que era a segunda, mas também podia dar-se o caso de ser a primeira. De qualquer modo, ainda não era nascida.
Gostei imenso do livro. Guardei-o na memória (mesmo não me lembrando de grande coisa), enquanto, em simultâneo, fui esquecendo outros que li, também de autores albaneses, como por exemplo A Luta Ideológica e a Educação do Homem Novo, título escrito por Enver Hoxha que acabo de encontrar neste momento na NET e de que nunca ouvira falar.
A minha relação com a Albânia saltou para fora dos livros no dia em que fomos informados que chegaria à Portela uma delegação do Partido Comunista Albanês.
[Aos cuscos: quando eu era mais nova a Portela já era na Portela, o que dava imenso jeito porque o bar do aeroporto era praticamente o único que se podia frequentar fora de horas…]
Embora a Revolução Cultural Chinesa tivesse acrescentado à lista dos 7 pecados mortais incontáveis pecadilhos pequeno-burgueses, o que tornava a lista tendencialmente infinita e, como tal, difícil de enunciar mesmo por aqueles que dominavam o Teorema da Incompletude de Gödel, o que não era, manifestamente, o meu caso, e nesse role actualizado de interditos constasse agora a vaidade no vestir — a verdade é que nos aprontámos à maneira para ir esperar os albaneses!
Então lá fomos, julgo que de socas e camisas de flanela aos quadrados que na altura a Miuccia Prada era comunista e não fazia roupa, em direcção ao aeroporto. Havia bandeiras, havia cartazes e havia uns cantos revolucionários que seriam cantados na hora H. A hora, contudo, insistia em manter-se entre o F e o G e os albaneses nunca mais chegavam. E embora tivéssemos almoçado, alguns de nós já comiam qualquer coisinha.
Estava-se mesmo a ver que íamos perder o episódio da Gabriela, quando alguém anunciou: Vêm aí os albaneses!
Perfilámo-nos. Mal os primeiros passageiros deram o ar da sua graça, as vozes, altas, unidas como os dedos da mão, desataram a cantar a Internacional (e não o Fernando Lopes Graça que era simpatizante de um partido diferente).
Nunca tinha visto albaneses. Não sei como os imaginava. Verdes? De orelhas em bico? Julgo que não. Mas que aqueles passageiros não me pareciam nada albaneses, não pareciam.
Puxando as malas e mostrando um ar fatigado, apesar de sorrirem muito, acenava-nos um colorido grupo de turistas, camisas havaianas, bermudas, barrigas proeminentes e sandálias com meias pelo tornozelo. O que os denunciou foram as meias. Americanos! Alguém ainda pôs a hipótese de que seriam ingleses mas a falta de chapéus expedicionários não deixava margens para dúvidas. Sabendo-se como dão valor às coisas práticas, nunca um inglês partiria para África sem o chapéu de colonizador que lhe garante a protecção da nuca.
Como parecia mal interromper a Internacional a meio, cantámo-la até ao fim enquanto o grupo de imperialistas nos agradecia efusivamente. Entretanto, os camaradas albaneses, ao que parece, haviam sido atrasados na alfândega pela polícia capitalista-ó-burguesa.
Vim para casa, porventura a tempo da Gabriela, e nunca mais pensei no assunto. Até que há uns meses dei por mim a traduzir um livro do Ismail Kadaré.
Chama-se
Um Jantar a Mais e foi editado agora pela Quetzal. Eu já não fumo Português Suave sem filtro, o Enver Hoxha foi-se, mas o Kadaré continua um grande escritor. Quanto ao Manoel de Oliveira, não entra nesta história.