MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Sigamos o cherne!»

«Ai que prazer não cumprir um dever, ter uma crónica para escrever e não o fazer! (E com esta já vou na terceira ou quarta frase de abertura…)

As frases de abertura são fundamentais. A ponta inicial do novelo a partir da qual se tece o texto. Há quem prefira uma estrutura, um esquema, um tema, uma trama. No que me diz respeito, tudo depende da primeira frase. Da mão que dita a primeira frase, ou da primeira frase que é ditada à mão, se eu quisesse agora enlear-me num jogo afrancesado de palavras. Não sejamos, porém, injustos com aqueles que nos deram Flaubert. Ademais, coisas arrevesadas como “o ser do ente” são de suspeitosa produção germânica e não francesa.

Como argumento abonatório definitivo, recordemos que foi Paul Verlaine quem escreveu o verso que resume tudo: “De la musique avant toute chose”. E se a "Art poétique" somarmos o poema de Jorge Luis Borges (“Yo, que tantos hombres he sido, no he sido nunca aquele en cuyo abrazo desfallecía Matilde Urbach”) fica a ossatura completa, a forma e o desgraçado conteúdo, sobrando apenas Matilde Urbach como assunto romanesco, notando-se que não haverá romancista que se preze que não sonhe ser poeta ou, como Enrique Vila-Matas, ser poema (...)»

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer»

«Se recordarmos a Guerra dos Cem Anos que assolou a Europa durante a Idade Média, concluímos, sem que isso nos sirva de especial consolo, que há guerras que vieram para durar.

Dir-me-ão que tão longevo conflito foi coisa de selvagens, de hordas incivilizadas anteriores às luzes trazidas por Voltaire, Hume, Kant ou Diderot. De gente a viver nas trevas, sem saneamento básico ou destreza nos talheres, infestada de carraças e pulgas e convencida de que a peste era mais uma praga divina a acrescentar a outras – ou isso ou uma conjugação planetária tenebrosa, no caso de Saturno, Júpiter e Marte, exegese assinada na época pelas mentes mais ilustradas da Universidade de Paris.

(...)

Às duas explicações dominantes, há que acrescentar um terceiro elemento: o judeu. Como durante demasiado tempo aconteceu na Europa, na Idade Média os judeus eram o povo deicida responsável pela morte de Cristo. Daí à culpa judaica universal por todos os grandes males que pudessem afligir o mundo a distância era curta. Ou seja, já então as coisas não nasciam do vácuo. (...)»

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To make a long story short. 1897: realiza-se o primeiro Congresso Sionista; 1898: aparecem Os Protocolos dos Sábios de Sião… e depois é o que se sabe.

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Desafinação outonal»

« (...) Integrado nas comemorações deste ano dedicadas ao nascimento do poeta – dizem que passaram cinco séculos e, pelos festejos, o que seria se não tivessem passado…! –, tal lançamento veio colmatar uma falha de peso. Pois se estávamos até agora impedidos de apreciar o imaginário pictórico que a epopeia camoniana despertara em Valter Hugo Mãe, o que por si só seria de lamentar, muito mais pobres ficaríamos sem a leitura do prefácio assinado pelo prolixo vate (referimo-nos, claro, ao desenhista e não a Luís de Camões, que se limitou quase só a fazer versos).

É verdade que já existia vasta bibliografia dedicada ao poeta mais afamado da pátria, mas em lado algum creio que se possa vislumbrar tal capacidade de síntese, a genialidade de ser capaz de, numa página, nos explicar, explicar ao grande público, o essencial sobre Os Lusíadas.

Vou tentar elencar. Os Lusíadas são, em simultâneo, a seiva e os alicerces de Portugal; a História de Portugal tem coisas boas e coisas más; o melhor do mundo não são as crianças (Fernando, estavas redondamente enganado), mas a actividade artística. Finalmente, a ideia originalíssima e absolutamente inovadora em estudos literários de que a epopeia camoniana é “Muito mais do que aquilo que conta. Como conta é que é a maravilha que jamais acabará.” Quase poderíamos dizer deste prefácio que nos deparamos, finalmente, com o achamento do olho perdido de Camões.

“É preciso amar Camões como um diamante que nasce a partir das carnes vivas e mortas, do que floriu e se viu deitado a escombros” – e se isto não é prosa poética que a terra do meu quintal amanheça salgada para todo o sempre.

Entretanto, ainda decerto inebriada pela delicadeza dos desenhos ilustrativos, de fazer inveja a qualquer ilustrador, ou mesmo pintor que se preze – vão buscar, Almada, Pomar e tutti quanti –, sonhei (ando a lembrar-me imenso dos sonhos e ainda nem entrámos na hora de Inverno…) que, no lugar dos costumados enfeites natalícios, as árvores de Natal deste ano eram decoradas, não com bolas, anjinhos ou estrelinhas, mas com delicadas miniaturas do poeta que no meu sonho balouçavam desoladamente ao vento. A ideia resultara de um concurso aberto pelo Ministério da Cultura em altura incerta. (...)