“Se eu quisesse enlouquecia”, escreveu há muitos anos
Herberto Helder. A frase abre um dos textos mais citados de “Os Passos em
Volta”: “Se eu quisesse enlouquecia. Sei uma quantidade de
histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu
próprio...”. Trata-se, evidentemente, de uma liberdade poética: ninguém
enlouquece por assim o decidir, e ninguém no seu juízo perfeito assim o decidiria.
A loucura não tem graça nenhuma e, para o saber, não é preciso ter lido “A
História da Loucura” de Foucault ou visto “Family Life” de Ken Loach. Dito
isto, Albert Londres arranca-nos gargalhadas.
“Com os Loucos” é o quarto título da Sistema Solar, chancela lançada
pela anterior equipa da Assírio & Alvim. Traduzido por Aníbal Fernandes, o
livro tem todas as razões para ser apetecível: o editor, o tradutor… e o autor.
Albert Londres (1884-1932) foi um caso sério do jornalismo
francês, cognome oficial, “príncipe dos repórteres”. Na apresentação de “Com os
Loucos” assinada por Aníbal Fernandes, como sempre um valor acrescentado, reproduz-se
este retrato: “Na sua carreira não
isenta de quixotismo procurar-se-ia em vão uma reverência ao dinheiro, uma
deferência para com os que governam ou financiam, a docilidade perante as
ordens e as recomendações, a aceitação dos factos consumados e dos poderes
estabelecidos, a fuga perante as responsabilidades.”
Existe um reputadíssimo prémio
de jornalismo que leva o seu nome desde 1933, ano seguinte à sua morte a bordo
do Georges Philippar, navio que o trazia da China e que se incendiou em condições
nunca totalmente esclarecidas. Teria sido Londres, que garantia transportar na
bagagem os ingredientes de um grande escândalo, alvo de um atentado que o
arrastaria para a morte, a ele e a quase 100 dos 700 e muitos passageiros do
Georges Philippar? A pergunta nunca foi cabalmente respondida mas Londres não
necessitaria disso para se transformar numa lenda. Ter-lhe-ia bastado a sua
fibra de repórter.
“Com os Loucos” reúne
uma série de textos publicados em 1925 no “Petit Parisien”, fruto da
peregrinação de Londres por dezenas de asilos franceses, denúncia das condições
desumanas e absurdas em que a ciência moderna da psiquiatria (?), apoiada na bengala
estatal, lançou os loucos. No jornal foram 12, no livro somam 22. O primeiro
texto conta como tudo começou: “Embora eu não seja louco, pelo menos à vista,
quis olhar para a vida dos loucos. E os serviços públicos franceses não ficaram
satisfeitos. Disseram-me: ‘A lei de 38, segredo profissional, o senhor não vai
olhar para a vida dos loucos.” Fui ter com ministros, e os ministros não
quiseram ajudar-me. Um, no entanto, teve esta ideia: ‘Alguma coisa farei por si
se alguma coisa fizer por mim: submeter à censura os seus artigos.’ Pus-me
longe dele, e ainda lá ando.”
Humor negro. Escrita de cadência exacta. Remates imprevisíveis. Curiosidade à prova de temas difíceis e grandes distâncias. Empatia. Resultado, um ícone inimitável: “Notre métier n'est pas de faire plaisir, non plus de faire du tort, il est de porter la plume dans la plaie. ”
Humor negro. Escrita de cadência exacta. Remates imprevisíveis. Curiosidade à prova de temas difíceis e grandes distâncias. Empatia. Resultado, um ícone inimitável: “Notre métier n'est pas de faire plaisir, non plus de faire du tort, il est de porter la plume dans la plaie. ”
Lê-se “Com os Loucos”
e vão caindo por terra todas as supostas leis (invioláveis e maçadoras) do
jornalismo de reportagem. Londres parece errático. Londres troca o realismo pela
notação impressionista. Londres toma partido. Londres prefere a verdade à
objectividade. Londres não conta histórias (cliché que servirá à exaustão de
alibi à mediocridade e à falta de assunto), Londres vê. E o talento que é
preciso para ver!
Com os Loucos, Albert Londres, Assírio & Alvim, 2012
2 comentários:
Adoro quem se coloca para cá das barricadas.
Um abraço,
mário
Vou comprar.
cs
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