O nosso mais sagaz comentador observou que a morte de Miguel Portas instaurou um período de tréguas na sociedade portuguesa ou, pelo menos, na que tem algum reflexo nos meios de comunicação. Apesar de fazer um esforço para me afastar do ruído comum, acho que percebo a anotação. Durante alguns dias ouviram-se algumas vozes raras e calaram-se outras. Além do mais, entrava-se no período que vai de 25 de Abril ao 1.º de Maio e que o ritual democrático ainda em vigor respeita como uma páscoa da esquerda. Interventores menos habituais ou o registo emocional que a perda de Miguel Portas teve o condão de libertar nos habituais representantes da esquerda mediática revelaram um aspecto interessante: como disse Marisa Matias, não podemos viver sem esperança. Não podemos viver sem pão, sem grupos sociais, sem esperança e sem pessoas de referência que exprimem o que há de melhor em nós, o que em nós ainda acredita. Muitos dos que escreveram ou falaram mal tinham conhecido o Miguel Portas. Tinham-se cruzado ou estado juntos numa iniciativa, lido uma entrevista ou um livro, assistido a um debate, ouvido um comentário.
Há um período na vida das crianças em que estas parecem ter um amigo imaginário. Brincam com ele, reservam-lhe um espaço no carro da família, dão-lhe um nome, adormecem com ele. Geralmente, não querem partilhá-lo com a família ou com os pares, e calam-se quando alguém tenta imiscuir-se no seu mundo reservado. Aos três anos, Simone tinha dois amigos. Um era Anonas, talvez um rapazinho. O outro era Febo. Como Simone tinha também uma irmã mais velha, as deslocações de carro tornaram-se penosas. Anonas e Febo não cabiam no banco de trás, tinham de usar cadeirinha e cinto. Os pais e a irmã eram pacientes. Perceberam que se tinham transformado numa família numerosa. Conseguiram uma carrinha familiar em segunda mão, uma cadeirinha e um banco elevatório emprestados. Havia sempre um momento de pânico ao entrar na carrinha. Faltava alguém? O cinto de Anonas estava demasiado apertado? Simone era discreta. Mas quando, numa ocasião, admoestou o pai por este fechar a porta sem cuidado e quase magoar Febo, este começou a preocupar-se. Um dia, os amigos partiram. Primeiro Febo, mas Febo nunca fora verdadeiramente importante. Depois Anonas, e Simone adoeceu de tristeza. O carro de sete lugares já não fazia sentido. Uma tarde de domingo, quando rolavam numa estrada na direcção do mar, Simone alegrou-se. Do lado de fora, correndo ao lado do carro, vinha Anonas. Devia correr bem perto da janela, porque Simone colou o nariz ao vidro e durante algum tempo disse frases incompreensíveis onde se distinguia bem o nome do amigo. Depois Simone deixou de falar de Anonas. Depois deixou de falar. E um dia estava curada, tinha crescido e estava disponível para os meninos e meninas reais da escolinha.
Tenho uma amiga que não me proibiu de contar a sua história. É uma mulher alegre e extrovertida, e na infância deve ter sido hiperactiva sem défice de atenção. É primatóloga e veste-se com um estilo indefinível que remete para os locais exóticos da sua investigação. Tem um namorado imaginário há dez anos. Com nome, Bill, e residência ao Príncipe Real. Profissão, gostos cinematográficos, família, embora distante. Os amigos não o conhecem, porque Bill não gosta deles, só de ouvi-la falar. Passam férias e fins-de-semana em destinos maravilhosos de onde ela envia SMS de contentamento infantil. “Estou a sobrevoar o delta do Mekong com o Bill.” “ Estou a conduzir um Ferrari com o Bill.” “ Fui raptada no mercado de Pu Teh. Pelo Bill.” Às vezes, raramente, ele parece cometer um erro de escolha. Mas, mesmo nessas ocasiões, percebemos que é guiado pela imaginação dela: sexo desenfreado em hotéis de sete estrelas, sexo demais, estrela a mais.
Há uns tempos, o Bill zangou-se. Desapareceu, depois de uma cena de ciúmes com um rival imaginário, um primata por quem ela tinha apenas uma paixão científica e com quem dormira por cansaço e amizade. Acabaram-se os fins-de-semana românticos e as inumeráveis citações: o Bill acha isto, o Bill gosta daquilo, o Bill disse não-sei-o-quê. Já não havia Bill. Podia escrever calmamente os seus trabalhos, fazer conferências ao sábado, acompanhar os alunos em ausências intermináveis, ter reuniões com os comités e as task forces. O Bill já não se queixava. O Bill já não dizia nada.
Não se pode viver sem esperança. A tristeza pela perda do Bill foi tão verdadeira e desoladora, tão deprimente e difícil de suportar como a de outro companheiro mais real. O fim do socialismo real custou tanto aos que nele tinham depositado a esperança de uma vida como o fim da utopia do socialismo aos que deixaram de acreditar. Como diz António Barahona, aliás Muhammad Ashraf, novo guru dos nossos jovens poetas: este Ocidente sem deus nem fé não é feliz.
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4 comentários:
Muito bonito.
"A tristeza pela perda do Bill foi tão verdadeira e desoladora, tão deprimente e difícil de suportar como a de outro companheiro mais real." Este Bill mesmo imaginário parece-me um belo dum cretino.
"Podia escrever calmamente os seus trabalhos, fazer conferências ao sábado, acompanhar os alunos em ausências intermináveis, ter reuniões com os comités e as task forces." Mesmo na imaginação ela está melhor sem ele.
Magnífico. Obrigado pela partilha!... Muitas saudações!
Imaginação fértil de criança, de mulher e,...de homem, claro.
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