Quando Humboldt Gift (romance onde as ideias se confundem com as personagens mas as personagens são de carne e osso) foi impresso, em 1975, Saul Bellow era já um peso-pesado das letras.
No ano seguinte, o livro ganha o Pulitzer e o seu autor nem mais nem menos do que o Nobel da Literatura, três décadas eram passadas sobre Na Corda Bamba, a sua estreita literária.
Apesar do reconhecimento – que Herzog, de 1964, apenas ajudara a consolidar – o talento de Bellow não gera unanimidade. Nabokov, por exemplo, não hesitou em classificá-lo medíocre, embora, neste caso, a apreciação trouxesse um bónus: o autor de Lolita pensava o mesmo de Dostoievsky, Faulkner ou T.S.Eliot. Outros houve que preferiram condená-lo pelo rumo conservador das suas convicções, não deixando sequer de fora a acusação de racismo (reforçada pela célebre boutade “Onde está o Tolstoi dos zulus? O Proust dos papuas?”) e, claro, de misoginia.
Detractores à parte, razão teria Philip Roth quando disse que a espinha-dorsal da literatura norte-americana do século XX assenta em William Faulkner e Saul Bellow. Martin Amis chamou-lhe “uma força da natureza” e o ensaísta Roger Shattuck afirmou: “Bellow é incapaz de escrever uma página desinteressante”. Lemos as 527 páginas de “O Legado de Humboldt” e confirmamos: não nos enfastiámos uma única vez.
Saul Bellow, com razão, chamou a O Legado de Humboldt um “livro cómico sobre a morte”. E num escritor que não teve problemas em afirmar, contracorrente, que a ficção é a forma mais elevada de autobiografia, é sem espanto que descobrirmos que Humboldt é uma versão ficcionada do poeta Delmore Schwartz, embora, na realidade, o romance seja sobretudo sobre Charles Citrine, personagem que se deixa colar, sem grande dificuldade, ao próprio Bellow.
Se acrescentarmos agora que O Legado de Humboldt é uma mistura arrebatadora de Marx Brothers, Kafka e "Eclesiastes", antroposofia, capitalismo e poesia, não estaremos a enganar demasiado o leitor. Domina-o um ambiente burlesco e caótico, e é neste que se projecta o desejo de imortalidade e a busca do sagrado. O início antecipa uma morte anunciada e o fim decorre num cemitério (a última cena é das coisas mais comoventes e simultaneamente mais hilariantes que Bellow escreveu).
Charles Citrine é um intelectual de meia-idade, judeu de Chicago de origem modesta, colector de prémios literários e autor de um tremendo êxito da Broadway que lhe rendeu bom dinheiro. De tipo melancólico e contemplativo, encontra-se em crise de inspiração,
às voltas com um divórcio do qual se arrisca a sair arruinado (a reunião no tribunal com o juiz e os advogados é de antologia), e uma amante cara e exigente. A morte do seu antigo amigo e mentor Humboldt, poeta genial arrastado para a miséria pela loucura
e pelo materialismo galopante de uma América cada vez mais hostil à poesia, fá-lo reflectir, conjugando-se aquela com o aparecimento de Rinaldo Cantabile, mafioso de segunda linha que insiste em safar Citrine da previsível penúria, recorrendo para isso a todo o tipo de expedientes, inclusive ao legado de Humboldt, à primeira vista sem valor.
À medida que a existência de Citrine se vai tornando mais errática, mais ele próprio se afunda em desconcertantes reflexões sobre a vida do Espírito pós mortem, tentando, sem grande êxito, entender e aplicar os ensinamentos esotéricos de Rudolf Steiner, numa tentativa de vencer o terror da morte e mergulhar numa “esfera superior”, na qual êxito e fracasso mundanos deixariam de ser preocupação.
A vida, contudo, no seu tumulto, encarregar-se-á de reconduzir Citrine à sua condição mais simples e primordial, a de “um rapaz da cidade” a quem restam as memórias de um mundo que já não existe, capaz, ainda assim, de fazer o Bem. Maravilhoso!
O Legado de Humboldt, Saul Bellow, 2012, Quetzal, trad. de Salvato Telles de Menezes
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