29/09/08

O charme discreto do Forte de Peniche (que eu não sabia que tinha)

Para mim, Peniche foi o neo-realismo avant la lettre. Eu odiava ir a Peniche. A camioneta era ronceira, o caminho longo, às curvas, o vómito infalível. Dormíamos num quarto alugado pela minha mãe a uma mulher de luto, que também servia refeições.
Lembro-me do barulho do mar e dos lençóis pejados de humidade à noite.
No Forte propriamente dito havia uma sala com um vidro comprido, depois um corredor e outro vidro e depois o meu pai. Ele às vezes não aparecia porque fazia greve às visitas.
Durante estes anos, nunca falou muito da sua estadia lá. Uma vez contou-me que os presos do PC tinham um rádio mas que não o emprestavam assim de qualquer maneira. Os "outros" só podiam ouvir as emissoras previamente aprovadas pelo partido.
Eu própria, lembro-me de pouca coisa. Mas sei que odiava ir a Peniche. [Pelo contrário, ir visitar o meu pai ao Hospital de Caxias era uma festa. Comíamos juntos à mesa e havia um quadro preto com giz onde eu podia desenhar. Chegávamos lá por um caminho de chorões e fazia sol.]
Ó SUA BESTA, IMPORTA-SE DE REPETIR?!!!

28/09/08

Leituras

«O meu Mediterrâneo começa em Tavira, pelos meados do século XX, e acaba (provisoriamente) em Chipre, já neste milénio».
Começa assim o novo livro de Henrique Garcia Pereira, Fragmentos do Mediterrâneo.
Não confundir o autor com o advogado do MRPP, e não confundir o livro com um guia de viagens exóticas. Citando Josep Pla, citado nos Fragmentos..., nele «no hay mosquitos, ni chacales, ni objeto sorprendente o raro». Quanto a Garcia Pereira, é professor catedrático do Instituto Superior Técnico e gosta de «misturar tudo». Também escreveu Arte Recombinatória, 2000, Apologia do hipertexto na deriva do texto, 2002, e A Matéria de que são feitos os Sonhos, 2004. É fã incondicional de Enrique Vila-Matas.

27/09/08

That's all folks!

Paul Newman (26-01-1925/26-09-2008)
«I picture my epitaph: "Here lies Paul Newman, who died a failure because his eyes turned brown"»

26/09/08

Voltando à vaca fria: porque não tenho nada contra computadores mas tenho tudo contra a estupidez e a propaganda

Como ainda não está tudo parvo, há quem se informe. Fui parar a esta notícia via João Lisboa do blogue Provas de Contacto, que pode ser lida na íntegra aqui. Inclui a conclusão de um relatório do ano passado que concluiu isto:
LAST MONTH (Abril de 2007), THE UNITED STATES DEPARTMENT OF EDUCATION RELEASED A STUDY SHOWING NO DIFFERENCE IN ACADEMIC ACHIEVEMENT BETWEEN STUDENTS WHO USED EDUCATIONAL SOFTWARE PROGRAMS FOR MATH AND READING AND THOSE WHO DID NOT

Com o «projecto Magalhães», a INTEL, perdão, Portugal passou do «orgulhosamente sós» ao «orgulhosamente sós no comando da linha da frente».
E, vá-se lá saber porquê, esta histeria salvífica faz-me lembrar aquela coisa da «gramática com árvores» (como os alunos sabiamente apelidavam a gramática generativa), cuja mais-valia em relação aos tradicionais sujeito, predicado e complemento directo, e outra nomenclatura passadista, foi pôr as crianças a engasgarem-se com palavrões como «sintagma preposicional», e a deixarem de saber escrever frases com princípio, meio e fim.

25/09/08

Porque há coisas que me irritam: o tal de Magalhães que não tem culpa nenhuma

Num país sério – mas também dou de barato que tal coisa não exista – o «Magalhães» seria motivo de debate nacional.
Um debate que não se ficaria pela pacóvia questão de saber se o «Magalhães» é ou não é português [o que é certo é que o outro, o original, fez a célebre viagem de circum-navegação ao serviço do rei de Espanha sabendo de antemão que o mundo era redondo e não nasceu em Sabrosa (segundo investigação levada a cabo e publicada em livro pelo francês Michel Chandeigne)…].
Eu, pessoalmente, gostaria de saber outras coisas. Por exemplo:

1. Porque é que a parceria do governo é feita com a INTEL, multinacional que chegou a ser acusada por Nicholas Negroponte, o criador da iniciativa One Laptop Per Child (OLPC), de concorrência desleal? (Houve em tempos uma parceria entre Negroponte e a INTEL, mas a coisa não durou muito…)



2. Como é que os computadores portáteis vão ser usados nas salas de aulas pelos alunos mais novos e de que modo irão favorecer a sua aprendizagem?
Não me entendam mal. Nada tenho contra o uso da tecnologia. Mas quando estudos em neurologia, como os levados a cabo, por exemplo, pelo Professor Alexandre Castro Caldas, vêm em defesa da memorização da tabuada considerando-a indispensável ao desenvolvimento cognitivo, a pergunta anterior parece-me, no mínimo, legítima.
Estas e outras coisas é que eu gostava de ver discutidas. Para a propaganda tecnocrática, socrática ou outra qualquer, já dei.
Sócrates a vender «Magalhães»: há demonstradores da Bimby menos chatos

23/09/08

Da absoluta superioridade da literatura

«Há quarenta e tal anos, Ginger era o empregado principal do antigo café do Mercado – aberto toda a noite – servindo cafés e donuts. Esse café já desapareceu e Ginger foi há muito morto por um raio, quando estava a pescar num molhe em Lake Pontchartrain. »
Truman Capote, Música para Camaleões [roubado ao Moço]
Fotografia de Arnold Newman

22/09/08

Excerto de «Iniji», poema que nunca foi um inédito de Herberto Helder

[…]
Um corpo tem a lembrança excessiva de outro corpo
um corpo já não tem imaginação
não tem paciência com nenhum outro corpo

Fluidos, fluidos
tudo o que passa
passa sem parar
passa

Ariadne mais fina que o seu fio
não consegue reencontrar-se
[…]

Este coração já se não entende com os corações este coração
não reconhece ninguém na turba dos corações
Corações cheios de gritos, de ruídos,
de bandeiras

este coração não é desenvolto com estes corações
este coração esconde-se destes corações
este coração não se compraz com estes corações

Oh cortinas, cortinas e ninguém vê Iniji

Stella, Stella constelada
Já te não levantas para mim, Aurora

Tão pesados
tão pesados
tão taciturnos seus monumentos
tão impérios, tão quadriláteros
tão esmagadores bárbaros, tão vociferantes,
e nós tão nenúfar
tão espiga ao vento
tão longe do cortejo
tão mal na cerimónia
tão pouco da nossa idade e tanto a passear

tão farinha
tão peneirada
e sempre na peneira

asas de morcego
batendo sempre contra a cara
[…]
Henri Michaux, Iniji, versão de Herberto Helder in As Magias, Assírio & Alvim, 1988
Retrato de Herberto Helder por José Rodrigues

19/09/08

Um título apropriado aos nossos tempos embora a acção recue à década de 50

Já anda por aí o mais recente romance de Philip Roth. O primeiro capítulo começa assim:
About two and a half months after the well-trained divisions of North Korea, armed by the Soviets and Chinese Communists, crossed the 38th parallel into South Korea on June 25, 1950, and the agonies of the Korean War began, I entered Robert Treat, a small college in downtown Newark named for the city's seventeenth-century founder. I was the first member of our family to seek a higher education. None of my cousins had gone beyond high school, and neither my father nor his three brothers had finished elementary school. "I worked for money," my father told me, "since I was ten years old." He was a neighborhood butcher for whom I'd delivered orders on my bicycle all through high school, except during baseball season and on the afternoons when I had to attend interschool matches as a member of the debating team.
Se quiser ler o resto (do primeiro capítulo...) é só clicar.

A propósito do divórcio: com a nova lei, será que ainda alguém conseguirá dizer «amar-te-ei até te matar»?


I Love You To Death, Lawrence Kasdan, 1990

18/09/08

«La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres»

[ Orson Welles ] 1962
Eve Arnold [ Marilyn Monroe Reading Ulysses ] 1954

[ Girls Sunbathing with Paper Bags on Heads ] 1963

Moshe Shai [ Homeless Man Reading Books ] 1977
Foi tudo roubado ao novo blogue O Silêncio dos Livros (ou como uma imagem vale mesmo, às vezes, mil palavras). O coleccionador responsável é o mesmo que serve n' O Café dos Loucos.

17/09/08

Claustrofobias

Eu nunca fui ao Alasca. Mas convenhamos que uma região que é conhecida por «The Last Frontier» tem apelo que baste. Sarah Palin comungará desse exotismo e talvez seja isso, acrescido ao facto de pertencer a um género que nem o profeta Sigmund foi capaz de perceber o que queria, que a torna tão popular. Tenho lido umas coisas acerca dela. Julgo saber que é contra o aborto, a educação sexual nas escolas, o uso dos preservativos e etc. Mas a questão que me encanina mesmo é esta: está ou não a possível futura vice-presidente dos EUA convencida que o mundo soma, contas feitas, 6 mil anos? Porque se a resposta for sim, sou levada a concluir que já nem a última fronteira me resta. Que era uma coisa que eu gostava de imaginar em segredo, para um caso de força maior.

A book a day keeps da doctor away

Confesso, ruborizada, que nunca tinha lido O Vento nos Salgueiros. O livro fez 100 anos em Março e eu, shame on me, li-o apenas este Verão, debaixo de um farol.
Cito A. A. Milne, citado na contracapa (e não é treta).
Podemos discutir acerca dos méritos da maior parte dos livros e, na discussão, compreender o ponto de vista do interlocutor. Podemos até chegar à conclusão de que, afinal, ele tinha razão. Mas não podemos discutir acerca de «O Vento nos Salgueiros». O rapaz apaixonado oferece-o à namorada e, se ela não gostar, pede-lhe que devolva as cartas de amor que lhe escreveu. O velho experimenta-o no seu sobrinho, e altera o testamento em conformidade. Este livro é um teste de carácter. Não podemos criticá-lo, porque ele nos está a criticar a nós. (...) Devo, no entanto, aconselhar o leitor: quando pegar neste volume, não tenha a presunção de julgar o meu gosto literário ou a mestria de Kenneth Grahame. Quando iniciar a leitura, estará apenas a julgar-se a si próprio. Poderá merecê-lo, não sei. Sei, isso sim, que é o leitor que estará a ser julgado.

16/09/08

«I never read a book I must review; it prejudices you so»

Em comunicado, a Porto Editora informa que, dada a fraca qualidade literária da obra de Sherry Jones, renunciou à publicação em Portugal de A Jóia de Medina. Centrado na relação entre Maomé e a sua mulher Aicha (a tal que teria nove aninhos quando casou com o profeta...), o original esteve apalavrado com a Random House, porém o gigante da edição veio dar o dito por não dito, dizem uns, por A Jóia de Medina ser uma xaropada, dizem outros que por mero cagaço. Mas, mesmo atendendo a que a maioria dos romances históricos me dá sono, o facto é este: se o critério da qualidade literária pega... Oh! Oh!

Dilemas pós-férias ou algo parecido com isso

«Seria preciso ler Platão ao contrário» é um arranque que nem Iris Murdoch aguentaria. Talvez, em alternativa, «Chovem alfaborras por aqui». Ou soaria melhor, «Por aqui chovem alfarrobas»? Camus disse que elas «exalam um cheiro a amor». E isso em língua nenhuma se contesta.