06/06/22

E AGORA PARA ALGO COMPLETAMENTE DIFERENTE OU TALVEZ NÃO: «A nostalgia, ao contrário da memória, não tem a ver com o passado, mas com o presente (e com a incerteza do futuro)»

António Araújo a começar pelo País de Gales, a passar pelos alfarrabistas e as memórias de Tróia e a acabar na ausência de futuro em/para Portugal. 

Há dias, o Jorge Nunes, da Livraria Nunes, ao n.º 5-A da Rua de São Domingos de Benfica (sim, visitem-na, sff), trouxe no catálogo um livrinho deslumbrante, que me despertou de imediato o fervor comprador. Desde logo por ser obra de simplicidade enternecedora, sem pretensões nem jactâncias de espécie alguma. Chama-se Quando a Tróia era do Povo e foi feita pelo "colectivo do 9.º ano da Escola Secundária D. João II - Setúbal". (...)

Aquilo que aconteceu ao povo de Setúbal, expulso da Tróia em nome da "modernidade", é o que hoje sucede aos nossos jovens, privados da terra que é sua, em brutal e desigual competição num mercado imobiliário levado ao rubro por ricos reformados brasileiros ou expats franceses com tratamento fiscal privilegiado, pelos milionários dos vistos gold ou por fundos financeiros obscuros, sem nome e sem rosto. Nos centros de Lisboa e Porto as casas escasseiam, alcançam preços astronómicos, fruto da especulação imobiliária e, como se não bastasse, da enorme pressão do turismo, um sector em que apostamos cegamente (no segmento de massas e pé descalço), à falta de indústria e serviços de qualidade, esses, sim, capazes de qualificar a mão-de-obra e de gerar verdadeira e perene riqueza.
Nos 50 anos do 25 de Abril, chegámos, assim, a um incrível paradoxo: vivemos hoje muito melhor do que no passado, com mais liberdade e justiça, com abundância de tudo, mas os jovens têm agora menos razões de esperança no futuro do que há cinco décadas. Quanto ao presente, muito de tudo; quanto ao futuro, nada de nada - e a certeza triste, inexorável, de que os nossos filhos terão, inquestionavelmente, uma existência mais difícil do que a nossa.
De resto, o país no seu todo está hoje a ser vendido aos bocados, e a um ritmo de que nem sequer nos apercebemos: empresas e negócios, as melhores casas e propriedades, as melhores terras, tudo à venda. Com a banca na mão dos espanhóis, a energia dos chineses, a indústria de pantanas, que resta de ti, Portugal?
O que hoje se passa é o resultado de uma tempestade perfeita, que os cidadãos não alcançam, que os governos não travam. De um lado, uma colossal dívida privada, das famílias e das empresas (um problema de que pouco se fala, concentrados que estamos na dívida pública); do outro, incentivos fabulosos (vistos gold, benefícios fiscais, off-shores) para que os estrangeiros nos comprem ao melhor preço, pedaço a pedaço, e que assim hipotequem o futuro dos nossos jovens. Quem vende está endividado, quem compra é fiscalmente privilegiado - haverá melhor receita para o desastre? O resultado é o que estamos vivendo, muito de tudo, nada de nada. E, de cima a baixo, um país convertido numa enorme Tróia, que foi do povo, mas já não é.»

9 comentários:

jj.amarante disse...

Nâo me revejo nessa conversa dos coitadinhos dos nossos fillhos. Quando éramos um casal jovem havia duas hipóteses: ou se tinha uma ajuda substancial dos pais/sogros para dar uma entrada para uma casa ou tinha-se que emigrar para fazer pecúlio suficiente para dar uma entrada pois nos anos 70 o mercado de arrendamento estava mal. Como ficámos e arranjámos dinheiro para a entrada de uma casa não precisámos de emigrar. Mas nos anos 60 do século XX o país perdeu 1 milhão de habitantes, 10% da sua população! Os filhos poderiam ter um futuro melhor se abandonassem o país como tantos fizeram. Com a diferença que emigrar nessa altura implicava uma ruptura violenta com quem ficava, não havia Whatsapp para manter contacto com os amigos. Portugal está muito melhor dop que nessa altura e os filhos têm condições em média muito melhores do que noutros tempos. E os netos também.

Luís Lavoura disse...

Aquilo que aconteceu ao povo de Setúbal, expulso da Tróia

Há aqueles versos de Bocage (n"A Ribeirada"):

"Em Troia, de Setúbal bairro inculto
Nasceu o preto castiço, de quem falo"

De onde se depreende que em tempos Troia foi de facto habitada por setubalões.

Luís Lavoura disse...

Nos 50 anos do 25 de Abril, chegámos, assim, a um incrível paradoxo: [...] os jovens têm agora menos razões de esperança no futuro do que há cinco décadas.

Isso nada tem a ver com Portugal nem muito menos com o 25 de Abril: isso é verdade de todos os europeus e americanos. Por toda a Europa e América do Norte, as pessoas acreditam atualmente que os seus filhos terão vida pior do que elas mesmas.

Ana Cristina Leonardo disse...

Luís, sem dúvida o no future é transversal às sociedades que refere. Mas o António Araújo estava a falar de Tróia e de Setúbal :):):)

Ana Cristina Leonardo disse...

J.J.Amarante, mesmo considerando que ter futuro é sinónimo de ter dinheiro para comprar uma casa - e não vou discutir essa noção de futuro - ao preço a que estão as casas, nem com a ajuda dos paizinhos (muitos ainda a pagar a casa deles)

Miguel disse...

Podem ter os três razão: estando melhor que em 1970, como diz jj amarante, vamos indo com uma derivada negativa, como diria António Araújo, ou seja, está tudo (a esmagadora maioria) lixado, sem futuro, como diz a Ana. A questão é: o que fazer para trocar o sinal ao raio da derivada?

Ana Cristina Leonardo disse...

Miguel, estiveste muito bem mesmo ecuménico :)

Fernando Antolin disse...

Olá.
Só uma pequena nota, tenho pena que a maioria dos - já escassos - alfarrabistas de Lisboa, carregue tanto no preço de alguns dos livros que vendem, manifestamente não merecedores de tal "distinção". O que lamento é não termos, tal como Londres, a quantidade lojas de livros em segunda mão, disponíveis em qualquer "charity" e noutros locais a descobrir.
Aqui deixo um deles, embora não exclusivo da venda em 2ª mão : WorldsEnd Bookshop, lá para o fim de Kings Road, a seguir ao cruzamento de Beaufort Street e logo depois dos correios.

Bom longo fim de semana, aí por Alcoutim ( inveja...e até já estou reformado, mas mesmo assim...)

Ana Cristina Leonardo disse...

Olá Fernando, qd descer ao Sul, avise, mas desde já lhe digo que aqui no concelho não há uma única livraria nem sequer um quiosque que venda jornais... Para ter uma ideia, VRSA parece Londres comparando. Abraço!