P: Contou que vem de uma família onde ninguém tinha estudado e de uma povoação onde não havia livros, e que descobrir a escola foi um “milagre”. O milagre de que toda a criança precisa é encontrar um bom professor?
R. Para mim é uma prioridade. Muitos directores e professores têm dito que a pandemia fez compreender que o futuro do ensino é a telemática. Não, isso é uma loucura. A tecnologia é uma interrupção brutal da relação entre o professor e o aluno. A única maneira de transmitir o conhecimento é a presencial. Sem a comunidade não há transmissão de sabedoria. Leio sempre aos meus alunos uma carta maravilhosa que Camus enviou ao seu professor de Argel no dia em que lhe concederam o Prémio Nobel (…) [esse professor] mudou-lhe a vida. Nenhuma plataforma digital pode fazê-lo, só um bom professor (...) muitos professores que fazem isto em absoluto silêncio, não os conhecemos. E somente a escola pública pode garantir a eliminação das desigualdades, e hoje está a destruir-se a escola e a universidade públicas em toda Europa para aplicar as leis americanas e britânicas.
P: A formação de professores está a ser precarizada? (...)
R. A escola não dá importância ao inútil. No discurso que Boris Johnson fez, há uns meses, aos estudantes britânicos disse que deverão escolher não a área que de que gostam, mas a que lhes pode trazer algum benefício. Para mim, isto é a destruição total da educação. Por isso, a ética das profissões está a decair (…): se há médicos que exercem medicina para ganhar dinheiro, não são bons médicos porque não têm amor. Não posso vender a minha dignidade (…). Outro aspecto incrível é os alunos pensarem que têm de estudar para aprender uma profissão. Há uma poesia maravilhosa de Kavafis, Ítaca, em que ele fala com o leitor para lhe dizer que a importância da viagem de Ulisses não é chegar a Ítaca, mas a experiência da viagem. Há que fazer entender aos estudantes que o importante é a viagem que fazem com o professor e os colegas, a experiência da escola. A ideia da escola/universidade-empresa não tem sentido.
P. Neste presente cruel que mercantiliza as nossas vidas, dar prioridade a essa experiência pode acabar com a expulsão do sistema…
R. Pode ser um risco, compreendo, mas tive muitos alunos que demonstraram que quando se estuda com paixão e amor, num momento ou noutro, há sempre uma possibilidade de ganhar a vida com dignidade. Na loucura da avaliação das universidades há um parâmetro que diz que uma boa universidade é aquela que leva o estudante a ganhar muito dinheiro (…). A escola sempre formou cidadãos cultos, democráticos, solidários. Hoje a ideia é que temos de produzir “frangos de aviário” com vontade de ganhar dinheiro e que só pensam em criar empresas.
P. O senhor é um dos maiores defensores das Humanidades (...). O que pensa ao ver as mudanças nos currículos que eliminam a filosofia ou a aprendizagem de memória? (…)
R. Estamos a destruir as coisas fundamentais. Há muitos pedagogos que dizem que aprender de memória uma poesia não tem sentido. Para mim, são estúpidos. Quando aprendes uma poesia de memória, com o coração – em inglês e francês diz-se by heart e per coeur –, fica em ti. E um dia quando olhas para uma coisa, ela surge do teu interior e compreendes coisas que antes não podias. Há um testemunho incrível de Primo Levi. Aprender La divina comédia de Dante permitiu-lhe, numa noite, proporcionar um momento de felicidade aos outros judeus presos no campo de concentração. Não te podem roubar as coisas que aprendeste. É maravilhoso como metáfora da sua importância. A ideia de hoje em dia é que tens de aprender só coisas práticas, esquecendo que a ciência, para criar, também necessita de fantasia e de imaginação (…)
P. Há um paradoxo no mundo actual: graças às novas tecnologias, temos ao nosso alcance o acesso a toda a cultura que queremos, mas ao mesmo tempo estão ressurgindo as ideologias mais extremistas: nacionalismos, populismos, a extrema direita…
R. É preciso fazer uma pequena precisão a esta leitura (...) pensamos que informação significa conhecimento, mas são duas coisas diferentes. Temos mais informação, mas não conhecimento. A internet é uma mina de ouro para quem sabe; para quem não sabe é muito perigosa. Um dia fiz uma experiência com os estudantes e pesquisei Giordano Bruno numa meia centena de sítios: um delírio total (…). Sobre o conhecimento se não tenho uma autoridade não posso falar. A internet é uma armadilha enorme, foi isso que criou a gente que invadiu o Capitólio dos Estados Unidos. O “senhor com os cornos” é uma imagem da ignorância dos lideres como Trump, Bolsonaro, Le Pen, Salvini… que contam histórias mentirosas.
P. O que deve fazer um filósofo, um intelectual, num mundo como o de hoje?
R. Tem de falar contracorrente. O problema de hoje é que não temos sentido crítico. O intelectual tem de ser um herético, como o era Giordano Bruno, que diz as coisas que a sociedade não quer escutar. Desafortunadamente, nas universidades os intelectuais parece que se resignaram, não têm vontade de reagir. Creio que temos de lutar, porque cultivar a utopia é fundamental para mudar o mundo.
2 comentários:
"Cultivar a utopia é fundamental para mudar o mundo". Bravo!
fui a londres a primeira vez em maio 2022. queria visitar/ver/ouvir o speakers corner. a caminho explicava a minha filha (14 anos) o que era o sítio. não havia lá ninguém. estava deserto.
rui
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