Estava doente. Melhorou. Adoeceu de novo. Piorou. Depois morreu. Acho
que foi Nabokov quem disse que a morte era uma banalidade. Quanto ao
Pessoa, escreveu: “Morrer é só não ser visto.” Apesar disto, nem uma
palavra? Afinal, caros senhores, morreu um poeta. E fosse o mundo um
sítio recomendável, um poeta valeria decerto mais do que um alqueire de
banqueiros.
Manuel António Pina
vaticinou: “A poesia vai acabar, os poetas/ vão ser colocados em lugares
mais úteis./ Por exemplo, observadores de pássaros/ (enquanto os
pássaros não/ acabarem).” Sábio, porém, é quem discorre assim:
“Antes que seja tarde, devo dizer que considero o acto de escrever pouco saudável.
E gostaria que o tom fosse considerado como um desabafo, e não confessional.
Decorrido meio século de existência, aprendi a coabitar comigo mesmo.
Quer essa relação se assuma como um comovido flash back, ou um severo ajuste de contas.
Felizmente, sobra-me mais tempo para esquecer, do que para emendar.
Decorrido meio século de existência, li e escrevi o suficiente para
considerar a escrita - como qualquer outro acto criador - antropófaga
até à vileza.
Ninguém se surpreenderá se afirmar que a minha geração superou esse objectivo.
Excedendo-se no show off, ou no strip-tease onanista, onde um predisposto auditório se reconhece e excita.
A leitura das gerações que me precedem, em nada têm contribuído para perturbar, ou abalar, este assumido preconceito.
Os Pessoa, Kérouac, Ginsberg, Hemingway, Michaux, Aquilino, Cardoso
Pires, o exaltante Saint John Perse, ou o inevitável Herberto, todos me
recusaram uma escrita límpida e saudável.
Até mesmo em O Sorriso Aos Pés da Escada, o único Miller que conservo, a beleza é perversa e sublinhada por um fio de pus.
Todos eles me envenenaram uma predisposição que começou por ser saudada
na escola, e onde a família se conformou em depositar esperanças de que
continuasse a ser bonita.
E, sobretudo, que tivesse futuro.
Antes que seja tarde, devo esclarecer que ainda hoje tenho relutância em
considerar o futuro, e que me reservo o maior desprezo pelo presente.
Sem pretender a honestidade que, dificilmente, reconheço nos outros,
arrisco que a escrita - como qualquer outro acto criador - precisa de
vítimas.
E alimenta vítimas.”
Desculpem-me a citação longa. Não
é preguiça, é dar a palavra a quem sabe: Jorge Fallorca, “Longe do
Mundo”, 2004. Partiu. Deixa mulher, um filho e dois netos.
17/04/14
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2 comentários:
Notei o mesmo. Excepto a meia dúzia de (bons) blogues que falaram nele, nada mais se ouviu. na tv, apenas a mediocridade de sempre.
Fallorca merecia mais, muito mais. Respeito e tempo de antena.
Já me dói tanto este país...
Toda a gente sabe que não és preguiçosa (embora toda a gente queira isso mesmo), mas vai uma aposta em como a Nico tricotou aquele cachecol laranja?
(alembrando-me de um post antigo)
Pago-te noutro, na cor que escolheres.
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