Fomos para a cama. Adormecemos. A minha mãe levantou-se, como habitualmente antes das 7. Eu acordei, cheirou-me a torradas e virei-me para o lado a amaldiçoar as torradas e o barulho. A minha mãe terá então ligado o rádio porque as ondas hertzianas começaram a chegar-me em sons indistintos, até que o som se tornou mais alto, inesperadamente mais alto, absurdamente mais alto.
Depois ouvi a minha mãe a passar apressada pelo corredor e a chamar pelo meu pai, vem ouvir, vem ouvir, aconteceu alguma coisa, aconteceu alguma coisa, e senti que o meu pai se levantava e ia com ela para a cozinha.
Na cozinha, as vozes do meu pai e da minha mãe misturavam-se com a música que vinha do rádio e de vez em quando um deles dizia chiu! chiu! Comecei a ficar intrigada e estava quase a levantar-me quando ouvi o meu pai gritar é a revolução, é a revolução e depois correr para a porta e começar a subir as escadas do prédio a chamar pelo Zé Augusto que era o vizinho anti-fascista do 3º andar, Zé Augusto, acorda, acorda, porra, é a revolução, é a revolução e depois, eu já levantada, vi a minha mãe ir atrás do meu pai com o pijama na mão, olha o pijama, olha o pijama, e o meu pai terá descido uns degraus para vestir o pijama e se não foi nu avisar o vizinho do 3º andar que era a revolução nem apanhou o comboio de pijama para ir ter com a revolução, nem por isso deixou de só aparecer três dias depois descalço e afónico porque tinha perdido os chinelos com que fora ter com a revolução e foi assim que se festejou o 25 de Abril lá em casa e quem nunca foi ter com a revolução de chinelos e voltou descalço que fique calado que não sabe do que fala.
24/04/13
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3 comentários:
"e quem nunca foi ter com a revolução de chinelos e voltou descalço que fique calado que não sabe do que fala."
(e que se cale) para sempre :*
Sempre tive dons sobrenaturais de análise política: dei os parabéns à minha mãe - ela fazia anos nesse dia -, resmunguei "são apenas contradições no seio da burguesia", e voltei-me para o outro lado na cama, até às onze e tal.
Por volta das três da tarde, como a minha mãe insistia muito em "ir ver o que se passava", condescendi em ir celebrar o aniversário dela até à Baixa/Chiado (era um pulo de casa até lá). À saída reparámos, com surpresa, que a nossa rua estava cortada ao trânsito (só depois vim a saber que éramos vizinhos do Spínola).
A tarde foi animada, uma festa de anos catita. Passou-me pela cabeça adquirir uma bela máquina fotográfica numa loja que tinha as vitrinas quebradas mas a minha mãe foi de opinião que não era boa ideia.
Mas mantive intacta a opinião: "eram apenas contradições no seio da burguesia".
Andam por aí uns imberbes, que compram tudo feito, de vida bem resolvidinha, mas interiormente muito mal-resolvidinhos, já se vê, que consideram fascizante: "não foi para isto que se fez o 25A". Eu também acho, os ditos e os desditos são a prova viva.
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