Eis um divertissement que requer alguma coragem.
Publicada originalmente em 1990, “Engano” é uma novela que tem como tema o
adultério mas em que os verdadeiros “enganados”, se os há, são os leitores de
Roth.
Os temas, tratados aqui recorrendo apenas à forma de diálogo, são os
habituais: a escrita, a solidão, a América, o judaísmo, Israel, as mulheres, a
esquerda, o envelhecimento.
Amantes adúlteros conversam. Quem conversa com quem
é uma interrogação que só a início perturbará o leitor. Depois o texto vai-se
compondo com mestria, num sedutor exercício de prestidigitação, hipnotizados que ficamos pelo número
de magia revelado paulatinamente à medida que avançamos na leitura.
Quem é
Philip, a personagem masculina, escritor americano e judeu, adúltero rendido a
uma mulher mais nova, suficientemente neurótica para que ele se interesse por
ela? Roth, claro, tantas são as pistas que nos são dadas. Mas logo a conclusão
parece precipitada, e é o próprio Philip (personagem) quem nos baralha os
indícios, colocando-nos a nós, leitores, no papel da mulher legítima que
confunde ficção e literatura, manipulação e verdade. Confundirá?
A pergunta
nunca chega a ter uma resposta satisfatória, enredada no paradoxo do mentiroso,
sendo o mentiroso, e isto é inevitável, aquele que escreve.
O próprio, aliás, considerará
a questão despicienda (“Quando um romancista digno desse nome [chega a uma
certa idade], já não traduz a sua experiência numa fábula: impõe a sua fábula à
experiência”).
Paródia de si próprio, “Engano” ficciona o escritor, ou a imagem
pública do escritor, divertindo-se a baralhar as cartas, numa variação irónica
do verso de Pessoa: “O poeta é um fingidor…”. No fim, vence em casa, claro.
Philip Roth, Engano, D. Quixote, 2013,
trad. de Francisco Agarez
1 comentário:
Comecei a ler há dois dias. Este Roth é arrebatadoramente desconcertante. Nada melhor para desanuviar desta atmosfera de flatulência e de refluxo gastroesofágico que nos assola.
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