21/04/12

Vamos lá aproveitar então o tempo livre e febril antes que a virose se vá de vez

Excerto pequenino da obra-prima intitulada O Legado de Humboldt, Saul Bellow, Quetzal, Tradução de Salvato Telles de Menezes
(assim ao calhas, pp 218-219)


"Sentaram-se juntos nos cavaletes de madeira, dois corpos cobertos de gotas de humidade, e o Pai Swiebel disse:
 O que é que fazes na vida?
O homem da barba estava pouco disposto a dizer o que fazia. O Pai Swiebel insistiu com ele para que falasse. Foi um erro. Era, na gíria demencial das pessoas cultas, contra o «ethos» do lugar. Ali, como no Downtown Club, não se falava de negócios. George gostava de dizer que os banhos de vapor eram o último refúgio na floresta em chamas, onde os animais hostis observavam uma trégua e a lei das presas e das garras estava suspensa. Temo que tenha retirado esta comparação de Walt Disney. O aspecto que fazia questão em recordar-me é o de que não estava certo que alguém se ocupasse de negócios ou fizesse ofertas comerciais enquanto se tomavam banhos de vapor. O Pai Swiebel foi responsável pela situação e assim o reconheceu.
 O tipo das barbas não queria conversar. Puxei por ele. Por isso, tive o que merecia.
Num lugar em que os homens estão tão nus como os trogloditas das cavernas do Adriático da Idade da Pedra e se sentam juntos, a pingar e enrubescidos, como o pôr-do-sol através da névoa, e, como no caso vertente, um tem uma barba cerrada, castanha e cintilante, e os olhares se cruzam no meio de ondas de suor e vapor, é muito possível que se fale de coisas estranhas. Acontecia que o desconhecido era uma caixeiro-viajante que vendia criptas, campas e mausoléus. Quando o Pai Swiebel ouviu tal coisa, tentou recuar. Mas já era demasiado tarde. Com as sobrancelhas franzidas, os dentes brancos e lábios expressivos rodeados pela densa barba, o homem disse:
 Já tratou do seu último repouso? Tem uma parcela de família? Já tomou as providências necessárias? Não? E porque não? Pode dar-se ao luxo de tanta negligência? Sabe como o vão enterrar? Impressionante! Já alguém lhe falou das condições dos novos cemitérios? Pois não passam de barros da lata. A morte merece dignidade. A exploração é tremenda. É uma das maiores fraudes imobiliárias que existem. Enganam toda a gente. Nunca dão as medidas estipuladas por lei. Vai jazer encolhido para todo o sempre. A falta de respeito é atroz. Mas já sabe como é a política... e as negociatas. Grandes e pequenos, andam todos a sacar. Um dia destes haverá uma investigação judicial e rebentará o escândalo. Muita gente irá parar à cadeia. Porém, será demasiado tarde para os mortos. Ninguém vai abrir túmulos para enterrar os mortos outra vez. De modo que continuará a jazer na sua tumba tapado com uma diminuta mortalha. Com os pés de fora. Como os miúdos nos acampamentos de Verão. E lá vai ficar, com centenas de milhares de corpos, numa morada definitiva aplanada, de joelhos levantados. Será que não tem direito a jazer com as pernas esticadas? E nesses cemitérios nem uma lápide é permitida. Terá de se contentar com uma placa de latão com o nome e as datas. Depois vêm as máquinas que aparam a relva. Costumam usar aquelas que têm lâminas múltiplas. É como estar enterrado num campo de golfe público. As lâminas riscam as letras do latão, que depressa ficam apagadas. E então deixará de poder ser localizado. Os seus filhos não conseguem encontrar o sítio. Está perdido para sempre...
 Pare!  gritou Myron, mas o homem continuou.
 Num mausoléu é muito diferente. Não custa tanto como se pensa. Estes novos modelos são pré-fabricados, mas são cópias dos melhores, a começar pelos túmulos etruscos, passando por Bernini e acabando na art nouveau de Louis Sullivan. As pessoas agora andam loucas com a art nouveau. Pagam fortunas por um candeeiro Tiffany ou por um lustre. Comparativamente, um túmulo art nouveau pré-fabricado sai barato. E assim uma pessoa distingue-se da multidão. Está no que é seu. Ninguém quer ficar encerrado para toda a eternidade no meio de um engarrafamento de trânsito numa autoestrada ou numa enchente do metropolitano."

15 comentários:

henedina disse...

Privada também na morte deve ser o secretario da segurança social.

henedina disse...

Mas gostei do aperitivo de Bellow.

The Turk disse...

Passagem a cotejar com o Loved One, do Waugh, de que me parece tributária.

Ana Cristina Leonardo disse...

Será. Talvez. Mas só pelo tema do cangalheiro, e que aqui é apenas um apontamento. De qq modo modo, gosto especialmente destas frases

"Temo que tenha retirado esta comparação de Walt Disney." (1ª gargalhada)
"Será que não tem direito a jazer com as pernas esticadas?" (2ª)
"Está no que é seu." (3ª)

besouro disse...

esse excerto comparado com este, inenarrável:
http://educar.wordpress.com/2012/04/20/otelo-o-metrossexual/

fallorca disse...

«um túmulo art nouveau pré-fabricado sai barato. E assim uma pessoa distingue-se da multidão. Está no que é seu.»
Mainada e chuva prá cisterna

Ana Cristina Leonardo disse...

besouro, quer saber que também pensei nisso quando tropecei nesse excerto? É que, ainda por cima, o livro do Bellow, não sendo uma biografia, parece ter sido mesmo inspirado na figura do poeta Delmore Schwartz, de quem ele deixa o retrato em "O Legado de Humboldt". E até se pode não gostar do Otelo; agora o que não se pode negar é que o Otelo poderia dar um livro.

Fallorca, chove?

fallorca disse...

Não, leoparda, só ameaços :(

Nota:(para irritar o anónimo e dp mando sms, fiufiu...)
subo à Feira esta semana: alinhas?

F disse...

A propósito (de planear a morte):
http://blogscraps.blogspot.pt/2012/04/planeie-sua-morte.html

Uma instituição (coligação)a fazer um trabalho meritório.

http://www.dyingmatters.org/overview/why-talk-about-it


E, como não há duas sem três, lembrei-me:

http://blogscraps.blogspot.pt/2012/04/eterna-morada-ainda-bem-que-houve-quem.html

m.a.g. disse...

E uma coisa leva irremediavelmente a outra:
http://youtu.be/S2eUw0CUuMc

F disse...

m.a.g.: muito lindo. muito importante.

Ana Cristina Leonardo disse...

m.a.g. e F, muito obrigada
Fallorca, com certeza que vou mas qual anónimo?

fallorca disse...

Ó caraças, o anónimo que nos aconselhou a dialogar por sms!

Cristina Torrão disse...

Quem pensa que pode atingir a eternidade com um mausoléu, é ir dar uma olhada aos jazigos abandonados, a cair de podres, outrora propriedade de famílias ilustres, no Cemitério dos Prazeres. É remédio santo!

F disse...

A eternidade andará a par da memória dos que ainda por cá andam.

Quanto a abandono, poderá haver algo de muito belo quando a cemitérios diz respeito (a morte literal):

http://petegettins.smugmug.com/Places/Arnos-Vale-Cemetery/6451050_ACPP7#!i=408985284&k=ZmUCG