Conheci o Miguel Portas, teria 12, 13 anos, ele 14 ou 15. Era a primeira reunião
clandestina em que eu participava, apesar de a mesma decorrer a céu aberto, nas
traseiras da estação de comboios de São João do Estoril, num pequeno jardim hoje
cimentado e do qual sobrará talvez uma árvore ou duas. Tratava-se de uma
reunião do MAEESL (Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário).
Tinha vindo gente de outras escolas (os putos dirigentes), e Miguel Portas era
um deles.
O debate foi acirrado, e o assunto, quase de Estado: abaixo-assinado
ou greve. O Miguel, já então na UEC, defendia, naturalmente, a posição menos
radical. Eu, que nasci com mau feitio, fiquei convencida com a greve. Devo ter
dito, entretanto, qualquer coisa que lhe despertou a expectativa de um recrutamento em potência, razão que
encontro para, no final da reunião, me ter perguntado se podia falar comigo à parte. Lembro-me de lhe ter respondido, do alto das minhas firmes e precoces convicções: “Podes, mas não
julgues que me convences”.
Não me convenceu. Nunca estive próxima dos UECs; na realidade, não os gramava nem com molho de tomate. Dele gostava. Sempre achei que possuía algo que, mesmo situando-me eu à extrema-esquerda, nunca pensei que
fosse dispensável: era civilizado e democrata. Não imagino como seria visto de
mais perto, mas costumo ter olho e quase nunca me enganar nas primeiras
impressões. No meio da muita histeria que tomávamos então por princípios inalienáveis,
o Miguel discursava e não agredia, discordava e não insultava. Mais tarde, já
crescidinhos, cruzei-me com ele algumas vezes. Sempre o achei igual. Bonito,
cordato, bon vivant, voz arranhada e sorriso nervoso. Sei que morreu. A
morte é uma grandessíssima filha da puta.
25/04/12
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9 comentários:
é.
"discursava e não agredia, discordava e não insultava." Concordo. Lamento muito a morte dele. Os que lhe são mais próximos que tenham algum conforto por isso que disse ser unânime.
Não gosto de homens consensuais e ele não era consensual mas apesar de não o conhecer parecia sempre que conseguiria levar ao consenso.
(soube pela televisão que foi preso aos 15 anos!!).
Foi preso ele, mais cerca de uma centena de putos que estavam reunidos em Medicina numa Assembleia Geral do MAAESL. Quando voltaram aos liceus, vinham os rapazes todos de cabeça rapada. As raparigas, sem sinais exteriores. Ás vezes, dá jeito ser rapariga.
grande texto.
Tenho pena. Tenho mesmo muita pena. Gostava muito dele, da sua integridade, do seu civismo. Não o conheci pessoalmente mas cativou-me há muito. Parecia-me uma pessoa muito sensata.
Tenho muita pena. Vou ter saudades.
Mais um Homem bom nos deixou.Soco no estômago...dass!!!!!
São raros os íntegros que estoica e abnegadamente não cedem ao oportunismo.
São raros os que colocam a inteligência acima da imbecil indigência.
São raros os de solidariedade incondicional.
São raros os que sabem serenamente incomodar.
São raros os de simpatia contagiante no meio da hipocrísia.
E por serem raros partem injustamente depressa.
Senhora,
" A morte é uma grandessíssima filha da puta."
A mim o que me revolta é haver por ai tantos filhos da puta carregadinhos de saúde...
Obrigado pelo excelente Post
Respeitosos cumprimentos,
São João do Estoril, sim.
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