O que escrever e como escrever sobre um livro ao qual assenta como uma luva o atributo perfeito? Porque é de perfeição que falamos quando falamos de A Filha do Optimista de Eudora Welty (apenas uma nota de perplexidade: a Relógio D’Água optou por manter o “p” de “optimista” no título embora no corpo do romance se opte pela grafia segundo o (des)acordo ortográfico).
Eudora Welty (1909-2001) é um dos muitos nomes “sulistas” que fazem grande a literatura dos EUA. O romance agora traduzido, vencedor do Pulitzer em 1973 mas já publicado numa versão curta de conto em “The New Yorker” no ano de 1969, narra o confronto entre duas jovens mulheres separadas pela geografia e pela cultura: Laurel e Fay. A primeira é filha do juiz McKelva, a segunda é a sua actual mulher, com quem o juiz casou há ano e meio após enviuvar da mãe de Laurel.
As três personagens encontram-se de momento em Nova Orleães, cidade onde McKelva veio a uma visita médica que acabará por complicar-se tragicamente. Pai e filha são nascidos no Mississípi, embora Laurel viva e trabalhe em Chicago; quanto a Fay, é originária do Texas e apenas se mudou para Mount Salus após o casamento. Muito mais nova do que o marido, não leva a sério o problema de saúde do juiz, ao contrário da filha deste que, intuindo a gravidade do caso, se metera no primeiro avião para o acompanhar ao médico.
O triângulo do conflito fica magistralmente desenhado no primeiro parágrafo: “Uma enfermeira segurou a porta para eles entrarem. Primeiro o juiz McKelva, em seguida a filha, Laurel, e por último a esposa, Fay, penetraram no gabinete sem janelas onde o médico ia observá-lo. O juiz McKelva era um homem alto e pesado, de setenta e um anos, que habitualmente usava os óculos presos a uma fita. Com eles na mão desta vez, sentou-se na cadeira elevada, como um trono, mais alta do que o banco do médico, com Laurel de um lado e Fay do outro.”
A mesma economia e aparente simplicidade narrativas atravessarão as cerca de 130 páginas de A Filha do Optimista, decididamente o melhor texto longo de Eudora Welty, conhecida, sobretudo, pelos seus contos. O romance está dividido em três partes distintas e atravessa-o uma contenção desprovida de qualquer sentimentalismo, apesar de o tema se prestar a isso: um homem justo e velho casa-se com uma mulher jovem de poucos escrúpulos. Após a sua morte, a filha, dedicada, culta e bem-formada, confronta-se com a memória do passado (o que inclui, naturalmente, a memória da sua própria mãe), acabando por, nesse processo, confrontar também a provinciana madrasta com o seu comportamento condenável. O risco de se cair num registo maniqueísta e moralista é, porém, completamente evitado por Welty que consegue com mestria deixar-nos com uma obra aberta, na qual o contraste moral entre as duas mulheres – fundado nas suas origens culturais e geográficas – se deixa ler na sua absoluta individualidade e humanidade, sem recurso a quaisquer ardis extraliterários.
O mais impressionante em A Filha do Optimista residirá, aliás, na forma sage como consegue manter em suspenso o conflito entre as duas personagens femininas principais, criando no leitor uma sensação de incomodidade que se vai avolumando, à semelhança de uma onda gigante que se nega a rebentar, preferindo desfazer-se em espuma. E mesmo na cena final em que Laurel e Fay se enfrentam, o resultado é surpreendente (dramática e moralmente surpreendente), preferindo Laurel guardar a memória dos mortos a vingar-se dos vivos. Uma pequena obra-prima.
A Filha do Optimista, Eudora Welty, Relógio D’Água, 2012, tradução de Margarida Periquito
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