Iris Murdoch é uma escritora sui generis que consegue aliar, como poucos, as ideias abstractas
— que fazem o caldo das suas histórias
—, às personagens concretas
— dir-se-iam de carne e osso
— que povoam os seus livros.
Formada em filosofia, temas como o amor, o poder, a linguagem ou a responsabilidade moral transformam-se em Murdoch em paisagens humanas, imprevisíveis e teatrais, como se, através da imaginação desta autora nascida em Dublin (1919-1999) — considerada um dos expoentes da literatura de língua inglesa da segunda metade do século XX — as próprias Ideias platónicas ganhassem vida e complexidade.
Um Platão ao contrário que, ao invés de Sartre (autor que Murdoch estudou), é capaz de nos conduzir para lá de personagens-arquétipo.
Como se escreve em Sob a Rede: “Toda a teorização é uma fuga. Temos de ser regidos pela própria situação e esta é indiscutivelmente particular. Efectivamente, é qualquer coisa da qual nunca nos conseguimos aproximar o suficiente, por muito que tentemos é como se ela estivesse a rastejar sob a rede. (…) É certo que as teorias podem, com frequência, ser uma parte da situação que temos de enfrentar. Mas, então, toda a espécie de mentiras e fantasias óbvias podem ser parte de tal situação; e diria que devemos saber detectar e evitar as mentiras e não que devemos ser bons a mentir. (…) Sei que coisa alguma nos consola e nada se justifica a não ser uma boa história – mas isso não impede que todas as histórias sejam mentiras. Apenas os homens mais eminentes podem falar e ser, apesar de tudo, verdadeiros. Qualquer artista sabe isto de uma forma confusa; sabe que uma teoria é a morte e que qualquer expressão está sobrecarregada de teoria. Somente os mais fortes podem vencer esse peso.”
Oxalá, pela sua aparente aridez, o excerto citado não afaste leitores do divertidíssimo Sob a Rede. Trata-se (apenas) de uma passagem do diálogo, O Silencioso, que, em tempos, o protagonista deste primeiro romance de Iris Murdoch havia escrito e publicado; o mesmo é relido, com saudável ironia e distanciamento, pelo seu autor em Sob a Rede.
O livro de estreia de Iris Murdoch data de 1954 e relata as aventuras picarescas de um escritor/tradutor, quase sempre falido, na Londres intelectual da altura, Jake Donaghue; mistura amores, política, estrelas de cinema, pequenos gangsters, muitas passagens pelos pubs, e até o rapto de um simpático cão/vedeta, em registo acelerado e burlesco.
Donaghue, o protagonista/narrador, é um bom tipo que vai sobrevivendo de expedientes nos intervalos de penúria, faz pela vida como pode e tem uma tendência acentuada para encontrar mulheres que não se importam de olhar por ele.
No início acaba de ser posto na rua por uma delas, que o troca por um corrector de apostas de perfil mais que duvidoso. O resto do romance relata as andanças de Donaghue que, no meio do caos em que vê transformada a sua vida, tenta manter alguma integridade moral, reflectindo sobre as escolhas que lhe vão sendo impostas, surpreendendo-se com os vários twists que não esperava (o leitor acompanha-o…).
As características e preocupações dos futuros romances de Murdoch estão já todos aqui, nomeadamente o tema do Bem (transversal à obra) que se vê reforçado pela inclusão da figura de Hugo Belfounder, personagem algo enigmática, milionário que lida mal com o dinheiro e o poder e que busca o despojamento a qualquer preço.
O melhor de Sob a Rede está, contudo, na forma pícara como a escritora entrelaça a catadupa de acontecimentos e… nos próprios acontecimentos.
Deixando-se levar sem freio, Iris Murdoch cria algumas cenas de antologia, como a bebedeira que termina com o mergulho nocturno no Tamisa de Donaghue e amigos (incluindo Lefty, o excêntrico líder dos Novos Socialistas Independentes), ou o desabamento dos cenários da antiga Roma, nos estúdios de cinema onde Lefty fazia um empolgado e empolgante comício interrompido pela polícia. Sem a maturidade de outros livros posteriores, ainda assim, uma delícia!
Iris Murdoch, Sob a Rede, 2011, Relógio d’Água, trad. de Maria de Lourdes Guimarães