29/08/11

Deixem-nos ter mais ideias e qualquer dia acordamos de estrela de David ao peito!

DECLARAÇÃO DE POBREZA

Eu, ____________________________________________ (nome), RG _________________________ (nº do RG) DECLARO, nos termos da Lei nº 7.115, de 29 de agosto de 1983 e, para os devidos fins, de que sou pobre na acepção jurídica do termo, não dispondo de condições econômicas para custear ________________________ (nome do serviço solicitado), sem sacrifício do sustento meu e de minha família.

Por ser a expressão da verdade, assumindo inteira responsabilidade pelas declarações acima sob as penas da lei, assino a presente declaração para que produza seus efeitos legais.

São Paulo, ____, de _____________ de 20__.
__________________________________
(assinatura)

Se bem percebi as regras avançadas pelo Álvaro para se ter direito ao "passe social" (mas esta nova malta, comparativamente aos anteriores, comunica que é um horror...) será necessário exibir a declaração de IRS, provando assim que somos mesmo pobrezinhos.
Deixem-nos ter mais ideias e qualquer dia acordamos de estrela de David ao peito (versão boazinha, vá)!

27/08/11

Quem tem uma mãe tem tudo?

"Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes são-no cada uma à sua maneira", escreveu Tolstoi, o maior deles todos. Anna acabaria mal, como se sabe, embora nada no romance do russo nos permita estabelecer uma relação directa entre adultério e suicídio.
Seguindo Nabokov, Anna Karénina não é um tratado sobre as consequências funestas da infidelidade conjugal, antes uma exposição moral sobre os limites do “amor carnal” enquanto alicerce da felicidade familiar.
Outra visão da família, muito menos optimista, foi avançada por Ken Loach em Family Life, filme de 1971 que relata o processo de degradação de Janice, uma jovem que se vai afundando na loucura, enquanto os pais (sobretudo, a mãe...), incapazes de se porem em causa e pensando ajudá-la, a empurram mais e mais para o abismo da esquizofrenia.
Deixando de lado Engels, Origem da Família, da Propriedade e do Estado (ensaio que, devo confessar, varri completamente da memória), o facto é que a família, nas mais variadas formas, vem constituindo uma estrutura social fundamental.
A esquerda, grosso modo, gosta de olhá-la como essencialmente repressiva e castradora — uma espécie de força de inércia que detém o avanço social — enquanto a direita prefere prestar-lhe homenagem, considerando-a o alicerce do desenvolvimento individual. Margaret Thatcher, por exemplo, não hesitou sequer em afirmar que “there is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families”.
Inegável é que a coisa se complicou muito com a entrada das mulheres no mercado de trabalho (num curioso processo em que a emancipação feminina deu as mãos à “boa e velha ganância capitalista”).
À visão dourada dos bebés pioneiros, entregues aos cuidados de instituições pedagógicas profissionais, somam-se as escolas/depósito, o encolhimento das famílias ao mínimo denominador comum, a ascensão das crianças e jovens ao estatuto de consumidor…
Numa frase, parafraseando Roth e pensando ainda nos motins ingleses: talvez seja chegada a altura de começar a falar a sério.

24/08/11

Nobody is perfect excepto os homens-bomba

Andava eu distraída destas lides meditativas, quando até mim chegaram os brados inflamados das hordas democráticas blogosféricas.
A razão do alarido? António Figueira aceitara ser assessor de Relvas!
Fui ver, como o Augusto Gil. A coisa resumia-se ao seguinte. Um enigmático e corporativo Miguel Abrantes descobrira (sem grande esforço, esclareça-se, porque vinha tudo escarrapachado no Diário da República) que António Figueira, perigoso bolchevista (diz Abrantes, não o despacho), fazia parte deste o início do mês do gabinete do ministro.
A este escândalo acrescentava-se o facto de Figueira, além de militante da esquerda radical (cito novamente Abrantes), ser membro desse baluarte vermelho (sangue) da Revolução (permanente?) chamado 5 Dias (olá Morgada!).
A notícia (post) metia fotografia e tudo (certamente para, na eventualidade de nos cruzarmos com Figueira no Chiado, o podermos sujeitar ao justo apedrejamento).
Deixem-me olhar a coisa com alguma objectividade (já para não falar do bom senso cartesiano), insuspeita que sou de gramar Relvas ou PCs.
O homem é de esquerda. Falo do Figueira. O ministro é de direita e o Estado é de Direito (digo eu, não querendo todavia rivalizar com as convicções democráticas dos empolgados críticos).
O ministro convidou-o para assessor. O Figueira, depois de reflectir (deduzo), decidiu aceitar.
Vêm os evangelistas Valupi, Miguel Abrantes, f., Pitta e etc. chamar-lhe incoerente e vendido, prova provada da existência da tal coligação negativa entre a esquerda radical e a direita radical que mandou o Timoneiro para Paris (os robalos do Vara não entram, naturalmente, na história).
Morte ao cão infiel! denunciam, enraivecidos, como se o Ultramar estivesse em perigo, Figueiras se tivesse casado com Relvas e Relvas usasse bigodinho.
Pergunto: afinal, em que ficamos? Primeiro é porque é bolchevista; depois é porque aceita um emprego.
E fico cá a pensar que se o Figueira fosse, de facto, um red terrorist ou o 5 Dias tivesse iniciado a Revolução Proletária fuzilando-o sem dó nem piedade lhes bateriam palmas. Ora, porra, camaradas!

21/08/11

Old chap, o caraças! [ainda os motins ingleses...]

Como quase sempre acontece, ninguém esperava.
A mais velha democracia do mundo (diz-se) viu-se literalmente a ferro e fogo durante vários dias. Pilhagens, incêndios, vandalismo, cinco mortos (no momento em que escrevo); 1500 detidos, cerca de metade, menores.
A esquerda decifrou nos acontecimentos um sinal de revolta contra o capitalismo. A direita leu-os como a demonstração dos malefícios do multiculturalismo.
As duas visões fazem-se espécie. A primeira, porque, por muito que me esforce, não vejo pingo de anti-capitalismo em gamar ténis de marca para uso pessoal. A segunda, porque ainda não percebi onde poderá estar o multiculturalismo quando o que os saques denunciam é o mais puro mimetismo consumista.
Acrescem a estas duas interpretações, os alicerces ideológicos do costume. A esquerda, paternalista, acha que eles são pobres e coitadinhos! A direita, desapiedada, acha que eles são madraços e bandidos!
Há muito que estes adjectivos deviam ter sido abolidos da conversa. Buñuel realizou Viridiana em 1961 e, pelo menos desde aí, ficámos a saber que a perversidade moral é algo muito bem distribuído pelos vários rendimentos.
Cameron optou pela explicação musculada: “criminalidade, pura e simples”. Para além de podermos discutir (noutra altura) o que é a criminalidade “pura e simples”, talvez se devesse esperar/exigir um pouco mais de reflexão.
Segundo alguns dos participantes, aquilo foi “para mostrar aos ricos que fazemos o que quisermos” (a luta de classes dá logo outra credibilidade à coisa…).
Vai daí, desataram a assaltar o comércio e a sair com o último gadget na moda, um plasma gigante ou uma T-shirt de marca. Faz sentido (e relembro que metade dos amotinados era menor): embalados (literalmente) desde o berço por publicidade agressiva que os convida ao consumo desenfreado, da marca de cereais ao smartphone mais eficaz para viver o momento, NOW!
O romance de Bioy Casares Diário da Guerra aos Porcos (os porcos são os velhos) foi escrito há 42 anos. Não mete smartphones, mas é altamente.

15/08/11

A Pastelaria entra em modo intermitente… muito intermitente [temos um príncipe à espera]

"O calor é insuportável; não nos deixa pensar e, apesar desta espécie de dolce far niente, à noite é impossível dormir! Estou saturado. Saturado da vegetação rasteira que me rodeia; saturado dos odores nauseabundos e orientais para os quais encontraram aqui a alcunha galante de maré baixa, mas cuja origem, na minha opinião, é apenas matéria fecal; saturado de contar a minha história neste quadro tão pouco romântico que até Sherazade teria renunciado a ele, preferindo ir viver para os jardins de Alá, onde, como se sabe, a lei imposta por Maomé proíbe que se bebam os néctares da Ibéria."
FIQUEM O MELHOR POSSÍVEL

Se declara abierto el baile


... até que os pés nos doam, José [porque como dizia o outro, bailar é sonhar com os pés]

14/08/11

Já que estamos na silly season… falemos de política

O tema pareceu-me apropriado, se não inspirador, particularmente à luz desta frase de Mark Twain: Suppose you were an idiot and suppose you were a member of Congress. But I repeat myself.
Creio que não estaremos muito longe da verdade se dissermos que, este ano, a abertura oficial da silly season ficou marcada pela entrevista de 14 de Julho a Lili Caneças.
Embora eu, pessoalmente, tenha apreciado sobretudo a deixa final de Lili, Obrigada eu. Não se esqueça de pagar o meu sumo, muitos houve que preferiram as revelações acerca do beijo trocado com Polansky, as leituras de Marx, os amigos maoistas ou as simpatias trotskistas da própria…
Ainda mal refeitos do extremismo de Lili, fomos informados que Nuno Fernandes Thomaz, do CDS, dera entrada na Caixa Geral de Depósitos como administrador-executivo, apesar de este nunca ter conseguido cumprir a promessa feita em 2005 — mandar construir um Museu da Bíblia a Norte e um parque tipo Eurodisney a Sul, tendo ficado por apurar se a ideia teria o beneplácito de Álvaro Santos Pereira, o Álvaro, ministro que nos fizera saber em Junho (ou seja, antes da abertura oficial da silly season e depois da dupla Pinho/Bidarra nos ter mandado rigorosamente p’ra outra banda) o quanto lhe aprazeria ver Portugal transformado numa Florida.
Em matéria de dress code, também se registaram alguns factos relevantes. Disputaram-se (e disputam-se) aventais, a Universidade Católica de Lisboa decidiu abolir os chanatos e as camisolas do Benfica, e o monárquico Rodrigo Moita de Deus garantiu que uma grande diferença entre os políticos de esquerda e os políticos de direita diz respeito ao guarda-roupa e [à] capacidade de transmitir a sexualidade. A direita costuma ser melhor nessas coisas, convicção tornada pública após a ministra Assunção Cristas ter abolido a gravata (esse símbolo fálico!) por razões energéticas e ambientais, esquecendo-se que muito pior do que as gravatas é a flatulência das vacas, animais que também estão sob a sua alçada.
Já depois disso aumentaram os transportes, foi anunciada a subida do IVA do gás e da electricidade e o fim de algumas comparticipações na saúde.
No entretanto, parece que alguém do PSD ligou para o 112 da Assembleia da República e o PS veio exigir um pedido público de desculpas. Temos oposição!

13/08/11

E logo hoje que eu podia ter ido à bola... [Wilson Eduardo, és o maior!]

A book a day keeps the doctor away: "Sob a Rede", Iris Murdoch

Iris Murdoch é uma escritora sui generis que consegue aliar, como poucos, as ideias abstractas que fazem o caldo das suas histórias , às personagens concretas dir-se-iam de carne e osso que povoam os seus livros.
Formada em filosofia, temas como o amor, o poder, a linguagem ou a responsabilidade moral transformam-se em Murdoch em paisagens humanas, imprevisíveis e teatrais, como se, através da imaginação desta autora nascida em Dublin (1919-1999) considerada um dos expoentes da literatura de língua inglesa da segunda metade do século XX as próprias Ideias platónicas ganhassem vida e complexidade.
Um Platão ao contrário que, ao invés de Sartre (autor que Murdoch estudou), é capaz de nos conduzir para lá de personagens-arquétipo.
Como se escreve em Sob a Rede: “Toda a teorização é uma fuga. Temos de ser regidos pela própria situação e esta é indiscutivelmente particular. Efectivamente, é qualquer coisa da qual nunca nos conseguimos aproximar o suficiente, por muito que tentemos é como se ela estivesse a rastejar sob a rede. (…) É certo que as teorias podem, com frequência, ser uma parte da situação que temos de enfrentar. Mas, então, toda a espécie de mentiras e fantasias óbvias podem ser parte de tal situação; e diria que devemos saber detectar e evitar as mentiras e não que devemos ser bons a mentir. (…) Sei que coisa alguma nos consola e nada se justifica a não ser uma boa história – mas isso não impede que todas as histórias sejam mentiras. Apenas os homens mais eminentes podem falar e ser, apesar de tudo, verdadeiros. Qualquer artista sabe isto de uma forma confusa; sabe que uma teoria é a morte e que qualquer expressão está sobrecarregada de teoria. Somente os mais fortes podem vencer esse peso.”
Oxalá, pela sua aparente aridez, o excerto citado não afaste leitores do divertidíssimo Sob a Rede. Trata-se (apenas) de uma passagem do diálogo, O Silencioso, que, em tempos, o protagonista deste primeiro romance de Iris Murdoch havia escrito e publicado; o mesmo é relido, com saudável ironia e distanciamento, pelo seu autor em Sob a Rede.
O livro de estreia de Iris Murdoch data de 1954 e relata as aventuras picarescas de um escritor/tradutor, quase sempre falido, na Londres intelectual da altura, Jake Donaghue; mistura amores, política, estrelas de cinema, pequenos gangsters, muitas passagens pelos pubs, e até o rapto de um simpático cão/vedeta, em registo acelerado e burlesco.
Donaghue, o protagonista/narrador, é um bom tipo que vai sobrevivendo de expedientes nos intervalos de penúria, faz pela vida como pode e tem uma tendência acentuada para encontrar mulheres que não se importam de olhar por ele.
No início acaba de ser posto na rua por uma delas, que o troca por um corrector de apostas de perfil mais que duvidoso. O resto do romance relata as andanças de Donaghue que, no meio do caos em que vê transformada a sua vida, tenta manter alguma integridade moral, reflectindo sobre as escolhas que lhe vão sendo impostas, surpreendendo-se com os vários twists que não esperava (o leitor acompanha-o…).
As características e preocupações dos futuros romances de Murdoch estão já todos aqui, nomeadamente o tema do Bem (transversal à obra) que se vê reforçado pela inclusão da figura de Hugo Belfounder, personagem algo enigmática, milionário que lida mal com o dinheiro e o poder e que busca o despojamento a qualquer preço.
O melhor de Sob a Rede está, contudo, na forma pícara como a escritora entrelaça a catadupa de acontecimentos e… nos próprios acontecimentos.
Deixando-se levar sem freio, Iris Murdoch cria algumas cenas de antologia, como a bebedeira que termina com o mergulho nocturno no Tamisa de Donaghue e amigos (incluindo Lefty, o excêntrico líder dos Novos Socialistas Independentes), ou o desabamento dos cenários da antiga Roma, nos estúdios de cinema onde Lefty fazia um empolgado e empolgante comício interrompido pela polícia. Sem a maturidade de outros livros posteriores, ainda assim, uma delícia!
Iris Murdoch, Sob a Rede, 2011, Relógio d’Água, trad. de Maria de Lourdes Guimarães

11/08/11

No espaço, onde, com sorte, talvez se estivesse bem


Carl Sagan lê um excerto do 1º capítulo de O Ponto Azul-Claro, Uma Visão do Futuro do Homem no Espaço, livro que acaba de ser reeditado pela Gradiva ("um acto de cidadania cósmica", chamou-lhe Miguel Gonçalves, Coordenador Nacional de The Planetary Society)

08/08/11

O mundo está a ficar muito perigoso [bem podem chamar o 112]


Homo economicus e tal

Como não me canso de dizer: está tudo na literatura.
Numa entrevista feita há uns anos (com Francisco Belard) a Enrique Vila-Matas, o espanhol explicou-o de modo claro: “(…) quando alguém me diz ‘Sabes o que aconteceu? Foi horrível!’, e conta uma história, dramática mas sem o ser demasiado, mais do que preocupar-me com o que se passa, e que é passageiro, sou tentado a ajudar essa pessoa explicando-lhe que isso já foi contado por Perec ou Flaubert numa novela curta. (…) Quanto mais se leu, mais coisas se sabe que aconteceram. O marido que tem uma mulher como Madame Bovary; não é assim tão dramático, está contado por Flaubert, repetiu-se muitas vezes.”
Ter lido Flaubert não aliviará ninguém do tédio do seu próprio casamento, embora ajude com certeza a pôr as coisas em perspectiva.
Foi o que pensei ao tropeçar por acaso numa frase de Dostoievski retirada a Crime e Castigo: “ (…) o senhor Lebeziátnikov, que acompanha as ideias novas, explicou há dias que, nos tempos que correm, a compaixão até está proibida pela ciência e que assim se passa na Inglaterra onde existe economia política”.
A economia política anda hoje pelas ruas da amargura. Ou com maior exactidão: a economia política anda a deixar uma caterva de gente pelas ruas da amargura. Não que a compaixão esteja proibida pela ciência: ao invés, é a própria ciência a confirmar que não fora a compaixão e já teríamos ido todos para o galheiro, contrariando, felizmente, as convicções do professor Vergerus em O Ovo da Serpente: “A antiga sociedade baseava-se em ideias românticas sobre a bondade humana. (…) essas ideias não concordavam com a realidade. A nova sociedade basear-se-á numa avaliação realista das potencialidades e limitações do homem. O homem é uma deformidade, uma perversão da natureza.”
Podemos, perante tais ideias, continuar a assobiar para o lado; a verdade é que está tudo nos livros. E no cinema. Apesar de Ingmar Bergman ter dito que “film has nothing to do with literature”. Falava, claro, de outra coisa. Eu própria, às vezes, não sei bem do que falo. Mas que me cheira mal, cheira.

06/08/11

Uma esmolinha por amor de Deus, qualquer dia paga-se para trabalhar ou o marketing chegou aos pobrezinhos

Lucro da Jerónimo Martins cresceu 33% no primeiro trimestre de 2011
Jerónimo Martins publicita ajuda aos trabalhadores, perdão colaboradores, para que aprendam a gerir os orçamentos miseráveis, perdão, domésticos
O texto de Pedro Sales sobre a pungente medida deste grupo empresarial

A book a day keeps the doctor away: "O Intruso", William Faulkner

Um Faulkner de final feliz datado originalmente de 1948, posterior, pois, à publicação de obras-primas como Na Minha Morte, O Som e a Fúria ou Absalão! Absalão! Em Portugal, na década de 60, seria traduzido na Europa-América sob o título O Mundo Não Perdoa; volta agora mais conforme ao original, Intruder in the Dust, nome com que foi também adaptado ao cinema em 1949.
Sul, pó, desolação, homens de convicções viris, calados. Uma sociedade assente no racismo e em papéis imutáveis. Faulkner regressa a um dos seus temas de eleição, através desta história de resumo fácil: um negro, Lucas Beauchamps, é acusado de matar um branco pelas costas.
Preso, aguarda-o o linchamento. Ajudado por um rapaz branco, Charles Mallison, que vive obcecado pelo comportamento “desajustado” de Lucas (Charles quisera pagar-lhe um favor – quatro anos antes, o negro salvara-o de morrer afogado – e vira as suas moedas recusadas), e pelo advogado Gavin Stevens, que se nega durante muito tempo a acreditar em Lucas, este acabará por ser ilibado do crime.
Faulkner constrói o livro ao “estilo policial”, mas o que é realmente marcante é a forma hábil como nos vai dando as personagens, subtraídas a qualquer maniqueísmo psicológico ou outro: e se Stevens tem dificuldade em aceitar a inocência de Lucas, Lucas, por sua vez, terá dificuldade em acreditar na justiça dos brancos.
Depois, claro, há a escrita inconfundível do autor de Palmeiras Bravas. Pujante, torrencial, elíptica, de nos pôr a cabeça à roda, a que se alia o trabalho do(s) tempo(s) da acção (tempo que é sobretudo memória), duas características que, por si só, fariam sempre de Faulkner um escritor inimitável (já que o poder dos génios é, por vezes, também esse: o de gerar um vazio à sua volta).

"It was just noon that Sunday morning when the sheriff reached the jail with Lucas Beauchamp though the whole town (the whole county too for that matter) had known since the night before that Lucas had killed a white man."

O Intruso, William Faulkner, 2011, Bertrand Editora



04/08/11

Portugal não é para levar a sério [alguém que chame o 112 para nos tirar daqui]

Os partidos do chamado arco da governação, após coincidirem na votação do Orçamento Rectificativo (PSD, CDS e PS), descobriram que, afinal, tinham divergências graves.
Tão graves que um deputado chamado Manuel Pizarro, do PS, já veio exigir um pedido de desculpas público ao PSD.
Lendo a notícia, percebe-se que se trata de uma divergência de vida ou de morte.
E se isto não é a silly season, eu sou o Eduardo Pitta.

02/08/11

A/c da abécula (sonhadora? idealista? rebelde?) que anda por aí a inverter o sentido das escadas rolantes pondo em risco a saúde e segurança públicas

… e que nos intervalos vem estacionar na Pastelaria esquadrinhando os seus posts e comentários com a minúcia que, imaginamos, o Santo Ofício terá dedicado aos textos de Giordano Bruno antes de o mandar (com toda a lógica) para a fogueira; dois conselhos de leitura alternativos e muito mais vantajosos:
As Obras Completas de Descartes (em latim)
As Obras Completas de Madre Teresa de Calcutá (em albanês)
Sempre às ordens.

Às vezes prefiro mesmo a minha cadela e que se lixe a metafísica

A história de Ameneh Bahrami é sinistra. Um homem, Majid Mohavedi, que viu recusado o seu pedido de casamento, atirou-lhe ácido à cara, desfigurou-a e cegou-a.
Segundo a lei vigente no Irão, quem com ferro mata com ferro morre. Um tribunal condenou Majid Mohavedi à cegueira e a sentença só não foi executada porque a vítima o perdoou no último momento. Em vez de cego, o agressor terá de lhe pagar uma determinada quantia em dinheiro, com base naquilo a que é chamado “dinheiro de sangue”.
É evidente que qualquer ser humano que lance ácido sobre outro merece castigo e dos valentes (a não ser que mais nenhum recurso lhe reste para se salvar a si próprio), e a história desta iraniana dirá muito da relação entre os dois sexos no país.
O que choca, contudo, na notícia é, mais do que o gesto do homem, um tribunal tê-lo condenado à cegueira. E, ainda mais do que isso, a execução da sentença ter lugar num hospital. Sem ou com anestesia, pergunto?
Porque, no último caso, seria um pouco como a pena capital, em que os matamos civilizadamente, tal como no poema da Sophia, sem descurar a sensibilidade do acto.

01/08/11

"Eu tenho horror a pobre!"

Ela é portuguesa e vive fora; ele é de fora e vive em Portugal. Em comum, uma certeza: os portugueses andam particularmente deprimidos. Mais do que é costume? Mais do que é costume.

“Depressão” recorda-me sempre Tiziano Terzani e o seu maravilhoso Disse-me um Adivinho: “Não é de admirar que a depressão seja hoje um mal tão comum. É quase reconfortante. É sinal que no íntimo das pessoas ainda resta o desejo de serem mais humanas”.
Os meus amigos conheciam o livro mas comentaram que não se devia exagerar. A crise era internacional e, fosse como fosse, a Europa mantinha-se o melhor sítio para se viver. Eu disse que talvez, mas.
Que seria bom não esquecer que ainda há 66 anos a Europa provocara uma razia no mundo e que os seus líderes actuais me faziam perigosamente pensar na piada de Lewis Black: “In my lifetime, we've gone from Eisenhower to George W. Bush. We've gone from John F. Kennedy to Al Gore. If this is evolution, I believe that in twelve years, we'll be voting for plants” (e já passaram quase 12 anos…), e também na frase de Groucho Marx em Duck Soup: “Ele pode parecer um idiota e falar como um idiota mas não se deixe enganar, ele é realmente um idiota”.

Após a fase das piadas voltámos a falar a sério da recente obsessão pelas fronteiras, dos imigrantes magrebinos afogados no Mediterrâneo, da e.coli dos pepinos que era coisa dos PIGS espanhóis, da implosão dos Impérios, da dívida americana, da extrema-direita francesa, da desorientação generalizada da esquerda, dos chineses… O costume.

E depois aconteceu o massacre na Noruega.
Um homem louro, um homem nórdico, alto, de olhos azuis, praticamente um património, um baluarte da Europa civilizada, praticamente uma Claudia Schiffer de calças, como diria Caco Antibes, matou quase uma centena de pessoas. Antes de passar à acção terá tido tempo para escrever “2083, A European Declaration of Independence”, um longo manifesto em defesa de uma nova Cruzada contra os perigos do Islão e do marxismo. Não, “as humanidades não humanizam”. Mesmo. Como dizia o raio do Steiner e eu não me canso de repetir.